Por que sons da natureza nos acalmam
Quase um século atrás, a aclamada violoncelista britânica Beatrice Harrison fez uma das primeiras transmissões externas ao vivo da BBC, do seu próprio jardim em Oxted, Surrey.
Era maio de 1924 e Harrison tocava melodias conhecidas, incluindo Londonderry Air (Danny Boy) e Songs My Mother Taught Me, de Antonín Dvořák, enquanto rouxinóis respondiam e cantavam docemente nas árvores ao redor.
A transmissão foi um sucesso de público, que rendeu apresentações anuais pelos 12 anos seguintes e o lançamento de um disco. Ouvindo em 2021, essas obras soam elegantes, melancólicas e serenas, e de alguma forma suspensas no tempo.
A relação entre os sons da natureza e a música traz consigo uma antiga sensação humana de bem-estar, mas que rende sempre novos rebentos.
Gerações de compositores internacionais criaram obras inspiradas na natureza, incluindo a sinfonia nº 6 de Beethoven (1808), também conhecida como “sinfonia pastoral ou lembranças da vida campestre”.
À medida que as tecnologias de gravação avançaram, os artistas experimentaram cada vez mais o mundo natural; Cantus Arcticus (1972), do compositor finlandês Einojuhani Rautavaara, incorporou sons de pássaros do Círculo Polar Ártico.
O americano Bernie Krause, músico e ecologista de paisagens sonoras, passou décadas gravando e arquivando sons do mundo natural e colaborou em diversos projetos, incluindo The Great Animal Orchestra, Symphony for Orchestra e Wild Soundscapes (de 2014, com o compositor britânico Richard Blackford).
A engenhosidade e imprevisibilidade da natureza também foram exploradas em experimentos, como a exposição de 2010 do artista francês Céleste Boursier-Mougenot, que levou pássaros diamante-mandarim vivos e guitarras elétricas Les Paul para a galeria do Barbican em Londres.
Em nosso mundo moderno, também parece que houve um novo despertar para a profundidade e diversidade dos sons da natureza, intensificados por preocupações ambientais e, além disso, pelo impacto da pandemia de covid-19, que nos deixou conscientes das riquezas diárias que podíamos não valorizar antes.
Logo após os primeiros lockdowns impostos pela pandemia, um dos memes da internet mais comuns (e muito parodiados) foi: nature is healing (“a natureza está se curando”).
Agora, uma mensagem cada vez mais ressonante é que a natureza nos revive.
O artigo americano de 2021 “Uma síntese dos benefícios dos sons naturais para a saúde e sua distribuição nos parques nacionais” (de autoria de Rachel T Buxton, Amber L. Pearson, Claudia Allou, Kurt Fristrup e George George Wittemyer, publicado na revista científica PNAS) considerou o impacto dos sons, como da água e do canto de pássaros em espaços verdes urbanos:
“Nossa análise mostrou que os sons naturais por si só podem conferir benefícios à saúde… Os ambientes acústicos naturais oferecem indicações de segurança ou de um mundo ordenado sem perigo, permitindo o controle sobre os estados mentais, a redução do comportamento relacionado ao estresse e a recuperação mental.”
Essas percepções também deram origem a projetos de arte, cultura e ciência extremamente multifacetados.
No início deste ano, a BBC lançou o projeto Soundscapes for Wellbeing, com programação em canais de rádio, acesso ao seu arquivo digital de sons da natureza e um experimento de natureza virtual, encomendado à Universidade de Exeter, no Reino Unido, que avaliou as respostas dos ouvintes ao conteúdo digital da natureza .
Conectado a isso está o envolvente podcast/série de rádio Forest 404: composto por um thriller de eco-ficção científica (ambientado no pós-apocalíptico século 24, em que as florestas foram eliminadas), discussões interativas sobre natureza/meio ambiente e paisagens sonoras exuberantes.
O autor do podcast Forest 404, Tim X Atack, explica seu processo criativo diante da proposta da produtora Becky Ripley: criar uma história sobre como é ouvir gravações do mundo natural:
“Minha mente perversa de dramaturgo imediatamente se perguntou como seria para alguém ouvir essas gravações se o próprio mundo natural tivesse desaparecido completamente”, conta Atack.
“Isso levou a história para o território da ficção científica, muitos anos no futuro da Terra — como seriam esses sons para um ouvinte que não tivesse nenhuma referência do canto dos pássaros, do vento balançando as árvores, das ondas do mar? As implicações lógicas e emocionais dessa ideia tomaram conta, e o mundo da história se desenrolou naturalmente a partir dessa grande pergunta sem resposta.”
“Ou melhor, deveria dizer que atualmente é uma pergunta sem resposta… Mas o mais assustador para mim é que eu conseguia imaginar perfeitamente um futuro em que as pessoas podem tocar, por exemplo, um arquivo de som de um melro cantando e pensar que é algum tipo de som de modem dial-up eletrônico.”
“Historicamente, os compositores colocaram com muita frequência o canto dos pássaros na música, para efeitos diferentes — mas acho que obras como essa são agora, cada vez mais, o som de um mundo sob ameaça. À medida que a crise climática continua inabalável, essas melodias, aos meus ouvidos, estão soando menos como celebrações alegres da natureza e mais como trenodias — canções para os mortos. Então senti que tinha que encontrar esse sentimento, essa mudança na música do mundo, em Forest 404. “
Em Forest 404, a protagonista de 20 e poucos anos Pan (Pearl Mackie) é extremamente eficiente em seu trabalho de excluir dados “antigos” (gravações de pousos na Lua; hinos pop etc.), mas ela fica paralisada quando esbarra em uma gravação misteriosa de sons de floresta tropical.
Os efeitos parecem liberar algo inato e inquietante dentro de Pan; e também têm um poder nostálgico na vida real de Atack, que cresceu no Brasil (“são os sons da infância; são profundamente reconfortantes, mas também vêm com sentimentos difíceis de desfazer, daquilo que é incontrolável e perigoso”) .
O pesquisador de doutorado Alex Smalley, que tem trabalhado no experimento de natureza virtual Forest 404, observa que as respostas do público têm sido fortemente conectadas à emoção e à memória pessoal.
“Fiquei surpreso com o nível de engajamento que pudemos alcançar com o Forest 404“, diz ele.
“Trabalhamos com 7,6 mil respostas; o formato significa que podemos levar essas experiências para todos os tipos de pessoas e elaborar uma conversa muito atraente que também pode gerar conjuntos de dados incríveis.”
“A colaboração na qual estou mais interessado, em última análise, é com os ouvintes”, explica Atack.
“O convite para o Forest 404 nos propiciou alguns momentos incríveis. Uma mulher na Austrália tocou as paisagens sonoras enquanto caminhava pela mata destruída nos incêndios florestais de 2020 e postou nas redes sociais. Foi um momento profundamente emocionante para mim. Ela até resgatou um coala e tocou os sons da floresta para ele bem alto em seu carro, enquanto o levava para um santuário…”
As paisagens sonoras incrivelmente sugestivas do podcast Forest 404 incluem músicas do artista Bonobo, da gravadora Ninja Tune, junto à obra do premiado designer de som Graham Wild (cujo extenso trabalho de documentário sobre a natureza inclui a série Planeta Azul).
A ideia da música da natureza como restauradora/expansiva também tem algumas raízes na cultura clubber do fim dos anos 1980 / início dos anos 1990, tanto nas locações rurais das primeiras raves (com o canto dos pássaros e breakbeats — tipo de música eletrônica — ao amanhecer), quanto nos cômodos para relaxar, que oferecem uma pausa da freneticidade das pistas de dança.
Uma nova geração de artistas eletrônicos, como o produtor japonês Yosi Horikawa, incorpora gravações da natureza no campo em seus ritmos experimentais.
Lançando um feitiço
Os sons da natureza também estiveram no centro de eventos criativos, ao vivo e online.
O grupo Spell Songs fez recentemente um concerto em que arrecadou fundos para o Projeto Natureza Urbana do Museu de História Natural de Londres, que foi transmitido por streaming, embaixo do icônico esqueleto de baleia azul do museu, com música inspirada nas odes poéticas à natureza de Robert MacFarlane e Jackie Morris, The Lost Words e The Lost Spells.
Outras instituições importantes que estão celebrando esses sons incluem a British Library, em Londres, que aproveitou seus arquivos de áudio naturais para criar programas de arte, como o Faint Signals (com o estúdio de artes interativo Invisible Flock, baseado em Yorkshire) e a série de palestras Digital Nature.
“[O arquivo de sons] é uma verdadeira fonte de inspiração, tanto para artistas quanto para o público”, diz Kenn Taylor, produtor cultural da British Library.
“Dos sons de vagens de sementes estourando a diferentes cursos de água, vida selvagem e clima. Os sons podem levar as pessoas a diferentes espaços e lugares sem sair de casa, o que acho que tem sido muito importante no momento. Quanto mais pudermos tornar a coleção acessível, melhor, e os artistas que trabalham com isso para criar coisas novas que podem se conectar com as pessoas de maneiras diferentes é um ótimo caminho para fazer isso. “
A cada primavera, o músico, cantor e compositor e ambientalista Sam Lee transporta os amantes da música e da natureza para a floresta para suas apresentações ao vivo Singing with Nightingales (ele também fará uma turnê em outubro com um novo álbum).
É fruto da paixão de Lee pela natureza, que inclui os belos projetos/transmissões ao ar livre online do seu coletivo Nest e seu primeiro livro, The Nightingale.
“O que aconteceu agora é uma fusão adorável de todas essas viagens que fiz: ecologia, forrageamento (busca de recursos alimentares) de plantas, medicina, culturas indígenas, com alguns professores incríveis, em um nível muito íntimo e romântico”, explica Lee.
“E também, como a música e a cultura se conectam com a natureza, como se separaram — e de repente, há esta atração para se voltarem uma para a outra. Percebi que essa separação em um nível social mais amplo foi profundamente impactante; é a causa principal de por que estamos em uma situação de colapso ecológico e catástrofe climática.”
“A música é uma ferramenta incrível e poderosa para nos enfeitiçar e trazer de volta a conexão com a natureza. É um relacionamento antigo, e um relacionamento em um contexto contemporâneo que pode nos restaurar como seres humanos e nos ajudar a nos tornar conscientes daquilo pelo o que precisamos lutar.”
Um alerta
Lee ficou acordado a noite toda ouvindo o canto dos pássaros em Dorset, no Reino Unido; ele combina um entusiasmo suave com uma atitude agradavelmente rock’n’roll:
“Eu vou dormir quando estiver morto!” ele diz, alegremente.
Suas músicas com rouxinóis são um tributo deslumbrante para um pássaro que provou ser um muso excepcional, atravessando culturas e gêneros; ao mesmo tempo, são um alerta necessário para o esgotamento da vida selvagem (incluindo rouxinóis) e dos ambientes naturais.
“Fico sempre espantado com a quantidade de pessoas que têm tão pouca ideia do que está acontecendo no meio ambiente”, diz Lee.
“No Reino Unido, temos uma taxa mais rápida de esgotamento da natureza do que em qualquer outro lugar na Europa, e uma taxa mais alta de desmatamento do que no Sudeste Asiático e no Brasil em relação ao que nos resta, então estamos nos livrando de nosso capital e patrimônio natural com uma destruição arbitrária. Existe a ideia de que está tudo bem lá fora, é verde e bonito, quando, na verdade, essas espécies estão sendo extintas.”
“Sinto que estamos perdendo nossa identidade, porque quando a gente for procurá-la, já terá ido embora. A ideia de como isso soaria, sem rouxinóis ou cucos nos lugares onde deveriam estar, é um pouco como se todos os rádios da terra fossem silenciados. Não é apenas ter negada uma experiência sonora realmente primorosa; é a própria saúde da terra.”
Para Lee, o espírito colaborativo desses shows na floresta representam alegria, assim como esperança:
“Estamos em um momento de mudança incrível, nos conectar com a comunidade e todas as coisas que precisamos fazer para trazer mudanças são, na verdade, coisas que tornam nossas vidas mais felizes e dão aquela sensação de segurança e de ser colegial. O ambientalismo vem acontecendo há décadas e décadas, como também é o maior movimento social do nosso tempo.”
Ele acredita que as redes sociais deram a essas questões uma plataforma mais ampla, mas também celebra essencialmente a natureza como uma força irreprimível e imprevisível:
“Eu diria que trabalhar com músicos humanos é muito mais incerto e inconstante”, ele ri.
“Na primeira semana que tivemos público, os rouxinóis estavam inicialmente reservados; estava muito frio e seco. Você apenas precisa se soltar e se entregar a isso, que parece um lugar realmente saudável para se estar, como um artista, que inicia tamanha liberdade criativa. Na verdade, a natureza é muito indulgente.”
Há um quê de humildade e emoção na unidade humana com os sons da natureza; não somos mais aspirantes a conquistadores, mas estamos inatamente conectados com a vida ao nosso redor.
Lee se lembra de ter testemunhado uma performance particularmente memorável, entre o versátil violoncelista Abel Selaocoe e os rouxinóis ao seu redor:
“Abel começou a tocar, e os pássaros enlouqueceram, cantando e piando tão forte, no tom e no mesmo ritmo. O público estava de queixo caído, era bom demais para ser verdade.”
Enquanto converso com Lee, posso ouvir os sons da natureza ao seu redor: uma brisa matinal; os sons das aves, incluindo o grasnar de corvos.
Presumi que ele ainda estava no campo, então me surpreendi quando ele disse que, na verdade, estava do lado de fora de sua casa no leste de Londres — mas faz sentido quando ele observa:
“Há um tesouro à sua porta.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.