Como envelhecer com propósito de acordo com Mirian Goldenberg
Mirian Goldenberg fala sobre o que é importante -- amizade, arte, liberdade, segurança, projetos de vida -- e o que deve ser “faxinado” para envelhecer com lucidez, sem medo
O livro A Velhice, da filósofa francesa Simone de Beauvoir, é a grande inspiração da antropóloga Mirian Goldenberg, que há mais de 30 anos estuda o envelhecimento. O tema rendeu vários livros, palestras e aulas em universidades aqui e no exterior — Mirian é professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A obra da francesa também foi o ponto de partida para a elaboração da palestra online A invenção de uma bela velhice: projetos de vida e busca de significado, que acontecerá na Casa do Saber Rio, no dia 22 de outubro. Mas o que é a bela velhice e como chegar a ela? A antropóloga responde nesta entrevista.
1 – Como você define ageless? Quem melhor exemplifica esse conceito no Brasil?
Ageless são as pessoas que não aceitam uma etiqueta: agora eu tenho 50 anos, 60 anos, 70 anos e não posso mais fazer isso ou aquilo. Elas não se deixam rotular e não se limitam pela idade, continuam fazendo o que sempre gostaram, e até melhor do que antes. Falo sobre os “sem idade” no livro a Bela Velhice, de 2013, que agora foi atualizado e ganhou um novo título, A Invenção de uma Bela Velhice. Na minha pesquisa com cinco mil mulheres e homens brasileiros, a atriz Fernanda Montenegro, de 90 anos, é citada como o melhor exemplo ageless. Ela é uma mulher potente, que exala produção, criatividade e beleza em todos os sentidos.
2 – Ter um projeto de vida é a base para uma velhice feliz?
Ter propósitos é importante em qualquer idade, mas fundamental na velhice. Para afirmar isso, eu me baseio em Simone de Beauvoir, em Viktor Frankl (neuropsiquiatria austríaco) e, principalmente, no grupo de nonagenários que estudo desde 2015. São mais de 50 mulheres e homens saudáveis, ativos, alegres, produtivos, com as quais tenho imenso prazer em conviver — os chamados superidosos, grupo que está crescendo no Brasil. Todos têm projetos de vida, não necessariamente grandiosos: tocar piano, estudar, ler, ter amigos.
3 – Em que medida a cultura e a arte são fundamentais para a bela velhice?
Entre as pessoas que pesquiso, observo algumas coisas em comum: a música é um alimento para a alma e para saúde delas, todas têm necessidade de informação — seja pelos jornais, televisão, internet — e gostam de literatura. Agora, na pandemia, falo com alguns dos nonagenários todos os dias. Com o Guedes, de 97 anos, estudo Os Lusíadas, de Camões. A Thais, de 95 anos, lê para mim pensamentos de Fernando Pessoa, de Clarice Lispector, de Mario Quintana.
4 – E o papel do afeto, da amizade?
Eu tenho um TED, A Invenção de uma Bela Velhice, que está com 1 milhão e 200 mil visualizações — ele viralizou por causa da amizade. As mulheres amam o TED e enviam para as amigas porque querem compartilhar a importância da amizade na vida delas. Obviamente a família é muito importante, um apoio, mas são os amigos que ocupam o espaço da liberdade da escolha, das conversas e principalmente da escuta, que é algo que os familiares nem sempre estão dispostos a fazer.
5 – Liberdade e segurança também são conceitos importantes na sua pesquisa. Eles divergem ou se complementam?
Liberdade sem segurança é caos, e segurança sem liberdade é prisão. Principalmente quando estamos mais velhos, nós precisamos de liberdade de escolha, mas também de segurança financeira e afetiva, de pessoas com quais podemos contar. A liberdade é muito importante para as mulheres — muitas dizem que estão no melhor momento da vida porque nunca foram tão livres.
6 — Mesmo com os avanços da medicina e o aumento da expectativa de vida no Brasil, o medo do envelhecer ainda é grande entre nós. Por que isso acontece?
Existe um extremo preconceito, uma estigmatização da velhice, o que eu chamo de velhofobia. Há mais de 20 anos combato esse preconceito e a minha militância é ainda mais necessária na pandemia, quando discursos velhofóbicos saíram do armário. Isto provoca, obviamente, um grande medo de envelhecer no Brasil, que é ainda maior no caso das mulheres, que temem não alcançarem a liberdade que elas tanto desejam e sofrem ainda mais com a ditadura da juventude.
7 – Você cita Simone de Beauvoir ao afirmar que quem se pauta apenas pela aparência tem uma velhice mais complicada. O quanto isso ainda é relevante?
Simone de Beauvoir inspira todo o meu trabalho, especialmente os livros O Segundo Sexo e A Velhice, que serviram como base para criar o conceito do corpo como capital – o corpo é um verdadeiro capital para as mulheres, principalmente as brasileiras. Mas não um corpo qualquer: jovem, magro, em forma, sensual. No isolamento mais estrito muitas reclamaram que engordaram, não conseguiram pintar o cabelo, fazer depilação. Não necessariamente por serem vaidosas, mas porque nós sofremos mais pressão para ter o corpo capital.
8 – Essa questão do corpo como capital continua forte no Brasil?
O fato de as brasileiras estarem nos primeiros lugares do mundo em procedimentos estéticos tem relação direta com essa cultura do corpo como capital, não só no mercado de casamento, sexual, mas de trabalho, das relações. Nos livros Bela Velhice e Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade eu abordo a distância entre o poder objetivo que as brasileiras estão conquistando em todos os mercados e uma miséria subjetiva, uma sensação de invisibilidade, de desvalorização se elas não estiverem dentro do modelo do corpo como capital. Não observei esse paradoxo em outros países, como a Alemanha. Lá, as mulheres são poderosas objetiva e subjetivamente. Como adquirir esse poder subjetivo de escolher o nosso próprio jeito de ser mulher? É um nó que precisamos desatar.
9 – Rituais de autocuidado ganharam espaço na quarentena. Até que ponto é saudável cuidar da aparência?
Autocuidado, beleza e saúde não têm a ver, necessariamente, com a preocupação obsessiva da aparência. Vejo dois movimentos paralelos: ao mesmo tempo em que parte das mulheres sofre pela dificuldade em manter o corpo capital, outras vêm se libertando desse ideal. Estão deixando os cabelos brancos, fazem faxina nas roupas, sapatos de salto alto, bolsas… Passam a buscar o que é mais verdadeiro, saudável, confortável para elas. Não consigo avaliar estatisticamente qual lado tem mais mulheres, mas vejo esse dois movimentos — e percebo também que a pandemia acelerou, para muitas, a libertação.
10 – O que as nonagenárias podem ensinar para as mulheres que estão chegando aos 60 anos?
A importância de ter uma vida significativa até o último dia, saber que o tempo é nossa principal riqueza e que deve ser alimentado com amor, alegria, generosidade. Saber dizer não — não podemos aceitar todas as demandas, responsabilidades, culpas. Fazer faxina existencial, ou seja, livrar-se das criticam, prejudicam — não temos tempo para desperdiçar com os vampiros de energia física e mental. A amizade é a melhor rima para felicidade e temos que escolher bem nossos companheiros de jornada. Ter gratidão e saborear a vida como um presente de Deus. Por último, a grande lição que me deram: velho todo mundo é, o jovem de hoje é o velho de amanhã. Portanto, todos nós temos que vestir a camiseta “velho-é-lindo!” para termos uma sociedade mais generosa, democrática e feliz.