Interiorização da covid-19 agrava com baixo isolamento
Com menos vagas de leitos de UTI que a Grande São Paulo, cidades do interior e do litoral temem sobrecarga na rede hospitalar ainda pior
A interiorização acelerada de casos da covid-19 em São Paulo, registrada nas últimas semanas, colocou em alerta autoridades e profissionais de saúde do Estado, que não descartam colapso geral da rede de atendimento hospitalar, com a possibilidade de um pico da doença nas cidades no interior e do litoral durante o inverno – fase do ano em que há sobrecarga natural dos leitos com aumento de casos de outras doenças respiratórias (asma, pneumonia, outras gripes) – e com o relaxamento do isolamento social registrado em alguns municípios.
Com menor oferta de leitos de UTI reservados para casos graves da covid-19, que a região da Grande São Paulo, e com menor concentração das unidades hospitalares – o que distancia os pacientes do tratamento -, a rede hospitalar, estadual e municipal, no interior e litoral de São Paulo ainda não foi testada em um quadro de pico de ocorrências da doença. O Estado é o epicentro de casos de contaminação pelo coronavírus no Brasil, atingiu nesta sexta-feira 41.830 casos e 3.416 mortes.
Levantamento que integra o Plano de Contingenciamento do Estado de São Paulo, feito há duas semanas, sobre hospitais e quantidade de leitos (clínicos e de UTI), existentes e previstos para ampliação para receber os pacientes com covid-19, mostra que havia 5.676 vagas de UTI (adulto e pediatria) para as 645 cidades paulistas. Desse total, 3.144 eram na capital e nas cidades da Grande São Paulo e 2.532 leitos nas cidades do interior e do litoral.
Com 52% da população do Estado, o interior e o litoral paulista tiveram até aqui um cenário distinto do vivido na Região Metropolitana de São Paulo, onde estavam concentrados até a semana passada 85% dos casos de covid-19. Possível reflexo das medidas de isolamento social iniciadas em março, quando a doença chegou na capital e cidades do entorno, os índices de contágio, de doentes atendidos e internados, de mortes e de leitos ocupados, vinham se mantendo baixos e estáveis fora da mancha urbana da Grande São Paulo – é o que os especialistas chamam de “curva achatada” de proliferação da pandemia.
Curva alterada
Esse cenário, de aparente tranquilidade, tem mudado e rápido. A taxa de concentração de novos casos da covid-19 no Estado em cidades fora da Grande São Paulo subiu de 15% para 32% nesta semana. No dia 17 de março – fim da primeira semana da pandemia -, São Paulo tinha 164 casos no Estado e uma morte, com casos concentrados na Grande São Paulo. No dia 30 de abril, esse número já era de 28.698 casos e 2.735 mortes, com registros espalhados para todas as regiões estaduais. Até ontem, 381 municípios já haviam registrado um ou mais casos e 166 tinham registro de óbitos. Se antes os registros eram de 7 cidades com registro do primeiro caso a cada três dias, agora são 38 municípios registrando a chegada da doença a cada três dias.
O Secretário de Desenvolvimento Regional do Estado, Marco Vinholi, alertou sobre os riscos dessa interiorização da doença. “O crescimento no interior tem se dado de forma muito acelerada nos últimos 15 dias”, afirmou Vinholi. “É um momento de atenção para todas as cidades do interior de São Paulo.”
Os números mostram que, se a curva de crescimento for mantida, até final de maio todas as 645 cidades paulistas terão registro da doença. “Não existe nenhuma região protegida. Nesse momento, a onda epidêmica está se distribuindo por todas as regiões do Estado”, afirmou Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan. “Dentro dessas projeções, com índice de isolamento baixo, isso não vai nos levar a uma situação ideal, do ponto de vista, de controle da pandemia.”
Sobrecarga
A taxa de ocupação de leitos de UTI para a covid-19 no interior e no litoral também tem crescido mais rápido do que na Grande São Paulo – onde há maior volume de casos. Nesta sexta-feira, havia 3.474 doentes internados com coronavírus nas unidades de terapia intensiva do Estado, taxa de ocupação de 70,5%. Um dia antes, a taxa estadual de ocupação desses leitos era de 66,9%. Já a taxa de ocupação dos leitos UTI na capital e cidades do entorno manteve-se em 89,6% nos dois dias.
Enquanto prefeitos, autoridades municipais e empresários pressionam o Estado para flexibilizar a quarentena – que foi prorrogada nesta sexta-feira, 8, pelo governo até o dia 31 – com base nas curvas ainda achatadas de transmissão da doença pelo interior, para minimizar os impactos econômicos da pandemia, profissionais de saúde e gestores da rede hospitalar planejam como enfrentarão a chegada da pior fase da covid-9, em pleno inverno.
Em Campinas, maior cidade do interior paulista, há cerca de 100 quilômetros da capital, a sobrecarga na rede hospital é um risco. Opção para envio de pacientes da Grande São Paulo, onde a taxa de ocupação dos leitos está se aproximando do colapso (quando atingir 100%), a cidade tem estrutura de referência para atendimento de casos da covid-19, abriga unidades para casos de alta complexidade, como o Hospital das Clinicas da Unicamp, e grandes centros de atendimento, como Hospital Municipal Mário Gatti, o Hospital Celso Pierro, da PUC-Campinas, entre outros.
Campinas recebeu 4 dos 15 primeiros pacientes encaminhados ao interior por falta de leitos na Grande São Paulo. Internados no Ambulatório Médico de Especialidades (AME) Campinas, inaugurado antes do prazo no mês passado para ser exclusivo para covid-19, a unidade estava nesta sexta-feira com 80% de ocupação dos leitos. Ao todo, são 659 vagas para UTI preparados para casos de covid-19 (leitos ativos ou a serem implantados) em toda região. Quantidade considerada subdimensionada para atendimento das 41 cidades e quase 6 milhões de habitantes, que englobam a divisão administrativa regionalizada de saúde no Estado – são ao todo 17 diretorias regionais de saúde (DRS).
O risco de sobrecarga na rede local fez o prefeito de Campinas, Jonas Donizette, resistir ao encaminhamento de pacientes de São Paulo, para não prejudicar os atendimentos regionais. Presidente da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), ele apresentou ao Estado um plano para retomar as atividades econômicas na cidade de forma gradua já no último dia 4, mas foi orientado a seguir o planejamento estadual. Nesta sexta-feira, ele prorrogou medidas de restrição na cidade até dia 31 e determinou bloqueio de vias para reduzir a circulação de pessoas. Uma técnica de enfermagem que ficou internada 29 dias internada em uma UTI da cidade, com covid-19, recebeu alta nesta semana. Ao deixar o Hospital Ouro Verde, em Campinas, onde também trabalha, Nicole Iara Santos Mota, de 24 anos, foi homenageada por colegas e familiares, por vencer a doença.
Nas cidades menores, o avanço rápido da doença preocupa ainda mais. Dependentes dos hospitais dos centros regionais, em especial para atendimentos de casos graves, a falta de leitos e a distância do paciente das unidades agrava os riscos de letalidade. Segundo o presidente do Conselho dos Secretários Municipais da Saúde de São Paulo, Geraldo Reple, que integra o Centro de Contingência do Coronavírus do Estado, esta semana foi atingida outra marca negativa nos números da pandemia no Estado: em um único dia foram internadas 1 mil pessoas com a covid-19 na rede hospital, enquanto 600 tiveram alta – números que deveriam estar aproximados, para afastar possibilidade de sobrecarga.
“Se essa proporção continuar ou até crescer, que é o que parece que vai acontecer pela tendência, nós estaremos em uma fase extremamente complicada”, afirmou Reple. “Todas cidades têm plano de contingenciamento, mas muitas delas não estão preparadas. Muitos municípios não têm um leito de UTI. Provavelmente, muitos não tenham nem leito de estabilização.”
Frio
O inverno e a chegada do frio, como ocorreu nesta semana, é outro agravante que preocupa profissionais de saúde no Estado. Nesse período, historicamente a quantidade de doentes com problemas respiratórios aumenta na rede hospitalar e a capacidade de atendimento nos hospitais beira o limite. O médico pneumologista e intensivista Luiz Cláudio Martins, que é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, explica que as doenças respiratórias pulmonares, virais e não virais, têm sua sazonalidade. “É natural que, em qualquer época de frio, elas aumentem como um todo, não só as infecciosas. A asma, por exemplo, aumenta muito, como aumentam os casos de doenças virais, como os de (gripe) H1N1, especialmente nos idosos.”
Para esse aumento sazonal de casos, diz ele, a rede está dimensionada. A novidade que preocupa é a sobreposição com os casos da covid-19. “Esse aumento é certo, vai acontecer. E junto com a covid-19, é óbvio que vai sobrecarregar ainda mais a rede.” Martins conta que no HC da Unicamp os registros de crianças com a covid-19 internadas ainda são baixos, mas nas enfermarias de pediatria, há lotação de casos de doenças respiratórias, em decorrência do frio. “É muito preocupante.”
Nesta semana, o Ministério da Saúde e o governo do Estado anunciaram liberação de recursos para ampliação do número de leitos para tratamento da covid-19. Reforço que atende a capital, o interior e o litoral, em especial as cidades maiores, como São José dos Campos, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Santos, Sorocaba, onde estão concentrados os casos e os hospitais de referência para tratamento.
No HC da Unicamp, por exemplo, havia 19 leitos de UTI para infectados com o novo coronavirus nesta semana, com taxa de ocupação na faixa dos 50%. Mas esse é um cenário mutante, alerta o médico Manoel Bértolo, diretor-executivo da área de Saúde da Unicamp. Serão abertos 18 novos leitos de UTI, com recursos liberados pela União, em parceria com o Estado. “A gente tem um risco, com o frio, porque não sabemos o que vai acontecer. Aqui no interior, especificamente na região de Campinas, não tivemos aumento importante do número de pacientes. Ele subiu, mas manteve a média de casos diária, que não é ainda altamente preocupante”, explica Bértolo. “A preocupação é que ele a qualquer momento suba, porque não sabemos o que vai acontecer com a chegada do frio do inverno. Nas próximas duas semanas é que saberemos.”
Isolamento
Não é preciso ser matemático nem um especialista em interpretação de gráficos – divulgados em profusão, sobre os dados da pandemia – para entender o cenário à frente que enxergam os profissionais de saúde e gestores da rede hospitar do Estado, com essa interiorização acelerada da doença em pleno inverno e com o agravante do relaxamento pontual das medidas de quarentena. O crescimento de novos casos da covid-19 tem sido mais acelerado nos últimos dias no interior e no litoral do que na Grande São Paulo. Entre os dias 3 de abril a 1 de maio, o Estado registrou crescimento 2.532% de novos contaminados no interior, enquanto na região metropolitana o crescimento foi de 625%.
A taxa de isolamento social no Estado foi de 47% nos últimos dias, bem abaixo do esperado, 70%. O que levou o governador, João Dória (PSDB), a prorrogar a quarentena até o final do mês. No interior paulista, no entanto, cidades grandes e pequenas têm adotado, por conta própria, de maneira informal ou via Justiça, o relaxado do isolamento e liberado a retomada das atividades econômicas. Prefeitos e empresário têm pressionado o governo estadual para liberar a retomada do comércio e demais atividades, por regiões, considerando índices locais de ocorrência de casos, de mortes e de ocupação de leitos – que estiveram até o início do mês estáveis e abaixo dos registrados na capital.
Para o especialista em geografia da saúde e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Raul Guimarães, o avanço acelerado da doença no interior e no litoral está diretamente relacionado a esse relaxamento da quarentena, nas últimas semanas. “O risco de faltar capacidade de atendimento hospitalar para os casos mais graves é grande.” O médico pneumologista e professor da Unicamp, Luiz Cláudio Martins, concorda e afirma que o isolamento social “é agora ainda mais necessário” devido ao inverno. “Com esse fator novo da covid-19, o distanciamento e as medidas de proteção individual, como uso de máscaras, higiene das mãos, são fundamentais.” Para ele, as medidas de flexibilização da quarentena nesse momento como “algo temerário e que precisa ser tratado com muito cuidado”. “Não podemos menosprezar uma doença que, em um dia, matou mais de 600 pessoas. O distanciamento é vital nesse momento.”