Mesmo condenada na Justiça, Petrobras manteve chefes acusados por funcionários de assédio moral
Trabalhadores afirmam que pressão psicológica se tornou "ferramenta de gestão na empresa"; Petrobras criou grupo de trabalho para incentivar denúncias.
Mesmo condenada na Justiça do Trabalho por assédio moral, a Petrobras manteve em seus quadros os gestores acusados pelos funcionários por abusos e violência psicológica nos processos. A empresa também é alvo de críticas por negligenciar denúncias feitas à ouvidoria, cobrando das vítimas provas e indicação de testemunhas para dar seguimento nas investigações, tanto em casos de assédio moral quanto de abusos sexuais.
Após denúncias de assédio sexual, a Petrobras criou um grupo de trabalho para incentivar mulheres que fizeram relatos de abusos a formalizar as denúncias, além de promover um raio-X em casos já denunciados por funcionárias na ouvidoria nos quatro últimos anos. A prioridade é rever processos e implantar melhorias nos procedimentos de prevenção, recebimento das denúncias e apuração de casos de assédio.
Em um dos casos, a empresa só demitiu um petroleiro acusado de ter cometido abuso sexual contra três mulheres Centro de Pesquisas (Cenpes) na Ilha do Fundão, Zona Norte do Rio, depois de uma denúncia do Ministério Público do Rio (MP-RJ). Uma investigação interna foi aberta pela ouvidoria da empresa depois de denúncias das vítimas, mas foi arquivada, sem punição, sob a alegação de falta de provas, apurou a GloboNews.
Condenações por assédio moral
A GloboNews teve acesso a três das ações em que a empresa já foi condenada pela Justiça do Trabalho pela prática de assédio moral. A Petrobras aparece como única ré nos processos, mas os chefes acusados de cometerem os assédios são citados nominalmente nos depoimentos e em documentos apresentados pelas vítimas, o que permitiria a identificação para possíveis punições por parte da empresa.
Em nota, a Petrobras afirmou que “não tolera qualquer tipo de assédio e está comprometida com um ambiente de trabalho saudável e digno para todos seus colaboradores”, mas que “por envolverem ações judiciais, a companhia só se manifesta nos autos do processo” (leia a íntegra abaixo).
O assédio moral se configura pelas reiteradas ações do empregador, normalmente, os superiores hierárquicos, que passam a atacar a honra e autoestima do funcionário para conseguir o seu objetivo, como afastá-lo de suas funções.
Em uma das ações, um engenheiro de equipamentos que está há 15 anos na empresa relatou ter sido assediado por seus superiores hierárquicos após se recusar a assinar um aditivo de contrato no qual ele era fiscal por suspeita de irregularidades.
Depois disso, o engenheiro conta que foi transferido cinco vezes no período de um ano, além de ser deixado sem trabalho e sem receber atividades para desempenhar, ficando isolado dos colegas por ordem expressa de sua gerência, o que resultou no adoecimento e afastamento por depressão por quase seis meses.
Antes de acionar a Justiça, o funcionário procurou por diversas vezes a gerência e canais de denúncia internos da Petrobras, como a ouvidoria. Mesmo assim, não teve respaldo nem viu resultados quanto às investigações. Segundo ele, uma das pessoas da ouvidoria chegou a dizer que o comportamento dele “incomodava”.
“No primeiro atendimento que eu faço [na ouvidoria], [o áudio mostra um dos ouvidores] dizendo basicamente o seguinte: Olha, entenda bem o que eu vou te dizer. Isso ficou marcado. Entenda bem o que eu vou te dizer, se tá certo, se tá errado, se tá torto, se tá direito, isso aí é outra coisa. Na hora que der algum problema, alguém vai pagar por isso. Mas entenda bem o que eu vou dizer para você. Trabalhar do jeito que você trabalha para eles, que é um jeito de questionar, de tentar entender o trabalho, está atrapalhando e eles vão te tirar. Então busca aceitar suas transferências e não ficar questionando tanto o próximo setor que você for. Meses depois estoura nas denúncias mais globais de corrupção envolvendo diretores e gerência executiva da empresa”, relatou.
O engenheiro gravou essa conversa e encaminhou para sua gerência direta. Diante disso, foi montada uma comissão para analisar o caso, que confirmou o abuso por parte dos gestores, mas considerou que a postura da chefia não teve intenção de punir o trabalhador.
“Com base nos documentos analisados, nas entrevistas e nos áudios, a Comissão concluiu que: foram evidenciados fatos que levaram à caracterização de violência psicológica, muito embora sem intenção punitiva, quanto ao período de inatividade do engenheiro Igor Mendes”, consta nas conclusões da comissão.
O documento diz ainda que não ficou comprovado que o engenheiro foi ameaçado após se recusar a assinar o aditivo de contrato – apontado como irregular pelo fiscal – e que “efeitos do conturbado contexto de reestruturação organizacional na companhia poderiam ter sido mitigados por ações eficazes de gestão”.
Sem respostas internas, o funcionário recorreu ao Judiciário, que reconheceu os abusos cometidos contra o funcionário. Segundo a decisão, foi confirmado o assédio moral por “práticas abusivas reiteradas” por parte da Petrobras e definido o pagamento de R$ 10 mil em indenização. A empresa recorreu em todas as instâncias, mas perdeu a causa que já teve o trânsito em julgado, ou seja, sem mais chances de recurso. O acórdão foi publicado em 2016.
Apesar da condenação, dois superiores direto que praticaram o assédio não foram punidos. Um gerente de setor se aposentou como concursado da empresa e o outro gerente continua trabalhando na companhia. Para o funcionário que conseguiu a punição na Justiça, a cultura da empresa precisa mudar para que condenações como a que ele obteve de fato surtam efeitos na gestão de pessoas e evitem outros assédios.
“Todas as pessoas que fizeram, contribuíram direta ou indiretamente para o estado de violência, as sucessivas violências que eu passei dentro da Petrobras…. Não aconteceu absolutamente nada com elas. Talvez nem saibam do resultado da ação, porque a Petrobras não faz o regresso contra essas pessoas. Se você hoje dentro da empresa leva para casa um sachê de café, a gente já teve uma situação dessa, você é demitido por justa causa. Se você quebra alguma coisa, tem que pagar. No entanto, para as pessoas que quebram outros seres humanos, que é o mecanismo de assédio, que violentam outros seres humanos, não acontece absolutamente nada e se institucionaliza uma política de violência no trabalho, que é a política que está institucionalizada na Petrobras”, afirmou o engenheiro de equipamentos Igor Mendes.
Em outro processo contra a Petrobras, um técnico de operações da Refinaria Henrique Lage (Revap), em São José dos Campos (SP), no Vale do Paraíba, também ganhou em primeira instância uma causa em que a Justiça do Trabalho acatou a denúncia de assédio moral contra o funcionário.
Na ação, ele afirma ter sido retaliado e ameaçado, em 2021, por quatro chefes – sendo um gerente, um supervisor e dois coordenadores – em uma sala fechada após relatar problemas operacionais na refinaria. Os superiores, segundo o técnico, fizeram cobranças sobre a sua postura e o ameaçaram com a possibilidade de transferência de setor e/ou mudança de turnos.
Ele teve diversas crises de pânico – e mesmo com atestado médico de um psiquiatra – teve os dias de salário descontados porque a empresa não aceitou o afastamento por questões de saúde mental.
Depois de analisar os depoimentos das partes e os documentos apresentados, a Justiça do Trabalho entendeu que houve perseguição ao funcionário. “O comportamento empresarial suplanta os limites da normalidade, impondo um cenário de perseguição, inclusive com surgimento de doença psíquica no trabalhador, o que revela ofensa à honra e moral do empregado, e ainda prejudicando a sua saúde psicológica. Resta, pois, configurado o assédio moral, em razão da ofensa à boa-fé objetiva”, diz a decisão do começo de março deste ano.
Pela apuração da GloboNews, os quatro superiores do funcionário que praticaram o assédio reconhecido pelo Judiciário – sendo um gerente, um supervisor e dois coordenadores – foram mantidos nas funções, mesmo com a condenação. Um deles é integrante da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Assédio (CIPA) da companhia. Na semana passada, a Petrobras recorreu da decisão.
“Hoje eu tenho uma ação ganha em primeira instância, aí a empresa, em vez de investigar, o que ela faz? Recorre da ação para dizer que nada aconteceu. É uma situação de impotência, mais uma vez eu me sinto numa situação, estou em uma situação de impotência sobre o fato que já é tão público, o sindicato publicizou esse fato e nada acontece. Se tornou em um assédio de toda a estrutura da empresa. Isso daí, se eu não tivesse um respaldo médico, se eu não tivesse um respaldo do sindicato, que acompanhou todo o meu caso, talvez a minha saúde estivesse em total declínio”, disse o técnico de operação em refinaria, Luis Alberto Gomes Sendretto, que processou a empresa.
Ele trabalha na Petrobras há quase 20 anos e afirma que desde a implantação do Programa de Prêmio por Desempenho, em 2019, os casos de assédio moral se intensificaram.
“A gente sabe também, a gente começa a enxergar que isso é uma questão estrutural da Petrobras. A Petrobras usa do assédio para se fazer gestão. Então, nesse sentido, isso que aconteceu só faz com que eu lute mais para que essas situações desagradáveis se desconstruam”, completou o funcionário.
Leia a nota da Petrobras na íntegra:
“A Petrobras reitera que não tolera qualquer tipo de assédio e está comprometida com um ambiente de trabalho saudável e digno para todos seus colaboradores.
Em relação aos dois casos citados, cabe informar que ocorreram em 2012 e 2021, respectivamente, e por envolverem ações judiciais, a companhia só se manifesta nos autos do processo.
Conforme divulgado no fim de março, a nova diretoria executiva da Petrobras aprovou propostas, a serem consideradas no Planejamento Estratégico, cuja prioridade é a atenção total às pessoas. Em linha com esta diretriz, a nova gestão da companhia está empenhada em rever processos e implantar melhorias nos procedimentos de prevenção, recebimento das denúncias e apuração de casos de assédio.
A Petrobras vem buscando estimular que os colaboradores que tenham vivenciado ou estejam vivenciando situações de assédio registrem seus relatos no Canal Denúncia. Por meio desses registros, a companhia pode tomar as medidas cabíveis para apuração e aplicação de sanções. A Petrobras reforça seu compromisso com a proteção às vítimas e enfatiza que a privacidade e o acolhimento aos denunciantes serão garantidos.”