Democratas fragilizaram Kamala e não fizeram transição com Biden, diz especialista
Numa das eleições mais importantes da história recente dos Estados Unidos, o Partido Democrata está refém de disputas internas e decisões tomadas há quase uma década. A avaliação é de Pedro Costa Júnior, doutorando do Departamento de Ciências Políticas da USP, especialista em política americana e autor do livro “O poder americano no sistema mundial moderno: colapso ou mito do colapso?”.
Em conversa com o InfoMoney, o acadêmico disse que falta autocrítica às principais lideranças democratas e que a vice-presidente Kamala Harris, favorita para substituir o presidente Joe Biden na corrida à Casa Branca, não foi preparada para a disputa com o ex-presidente Donald Trump.
Pelo contrário: seu papel apagado na atual administração e envolvimento em temas espinhosos, como a política migratória (especialmente criticada na gestão Biden), criam vidraças que certamente serão atacadas pelos republicanos durante a campanha e lembradas por parte de eleitores considerados estratégicos pelos candidatos.
“O Partido Democrata precisa fazer autocrítica”, diz Costa Júnior. “Biden era um presidente de transição − isso já era claro, era o projeto inicial, todo mundo sabia que ele não tinha condições de disputar essa reeleição. E insistiram nisso. Era para ser um governo de transição e não foi. Esse foi o primeiro grande erro estratégico.”
“O segundo erro foi não fazer um sucessor. A sucessora seria a vice-presidente, jovem que apontasse para o futuro, como Trump está fazendo agora [com a indicação do senador J.D. Vance]. Poderia ser Kamala, mas a própria cúpula democrata a queimou desde o primeiro dia. Ela não teve nenhum protagonismo no governo”, destacou.
O especialista lembra que historicamente, na política norte-americana, o vice-presidente é tratada como uma espécie de sucessor natural do titular do cargo ao final de um ciclo (normalmente de dois mandatos). No caso de Biden, em razão da idade (81 anos), desde a campanha de 2020, o discurso era de um governo de um mandato só − mote que no dia a dia se dissolveu na medida em que era construída uma campanha à reeleição.
Uma das consequências disso foi o abafamento do debate sucessório e o afastamento da vice, Kamala Harris, das grandes decisões políticas da atual administração. “Biden era o homem das relações internacionais no governo [Barack] Obama. Ele falava com o mundo todo, tinha muito prestígio internacional, ele tinha uma agenda própria. [Dick] Chaney era o governo [George W.] Bush, ele era a Doutrina Bush. No caso da Kamala, eles não só não deram espaço como deram a missão de resolver a crise migratória − o pior pepino para um político nos Estados Unidos”, compara o acadêmico.
“Como se não bastasse isso, os EUA ainda passam pela maior crise migratória da história. Então, eles aniquilaram Kamala. Os próprios democratas não a prepararam [para uma possível sucessão] e a queimaram”, avalia.
Lembra o professor que, em vez do vice Joe Biden, o nome democrata para o pleito foi Hillary Clinton, imposto pela cúpula do partido − superando, inclusive, figuras como Bernie Sanders, que despontava como forte candidato nas primárias.
Esposa do ex-presidente Bill Clinton, ela foi derrotada pelo “azarão” Obama nas primárias do partido em 2008, mas, naquele momento, ganhava sua chance de concorrer à Casa Branca à revelia de Biden e da tradicional passagem de bastão de presidente para vice.
“Quando voltamos lá, era para Biden ter disputado a reeleição [em 2020]. O projeto original era: Biden 2016-2020, Biden 2020-2024 e, depois, fazer a sucessão. Agora, ele estaria terminando a reeleição”, diz Costa Júnior.
O desentendimento que culminou na candidatura de Hillary Clinton, na prática, adiou os planos de Biden, que agora não tinha mais condições de disputar outra eleição. “Tudo isso fragilizou muito o Partido Democrata”, observa o especialista.
Biden desistiu de disputar a reeleição a pouco mais de 3 meses da corrida às urnas e imediatamente manifestou apoio a Kamala Harris, que já costurou apoio entre caciques e delegados democratas e destravou volume recorde de doações de campanha.
Apesar das recentes demonstrações de força com a oxigenação trazida pela provável candidatura de Harris, o especialista vislumbra dificuldades adicionais na campanha trazidas pelo episódio do atentado contra Trump ocorrido duas semanas atrás − que fez com que diversas peças publicitárias democratas fossem retiradas do ar.
“O atentado normaliza a campanha Trump. Até então, ele era o Trump do [ataque ao] Capitólio [em 6 de janeiro de 2021], das 34 condenações criminais [relacionadas ao pagamento de US$ 130 mil para comprar o silêncio da atriz pornô Stormy Daniels na campanha eleitoral de 2016]. Ele não era humanizado pelo Partido Democrata e o establishment midiático. Depois do atentado, Biden diz ‘eu liguei para Donald’. Ele nunca foi chamado de Donald durante a gestão Biden. Ele [agora] tem um primeiro nome e se torna humano”, observa.
Um novo Partido Republicano
Do lado do Partido Republicano, o pleito atual marca um novo momento, em que o trumpismo desponta como grupo político estruturado e mais influente − em contraste com figuras e movimentos tradicionais. Isso é evidenciado pela própria escolha do vice J.D. Vance para essa disputa, conforme pontua Costa Júnior.
“Quando Trump entra [na disputa] em 2016, [Mike] Pence é um nome que afiançava ele, um nome respeitado no velho Partido Republicano, muito ligado aos valores da legenda e muito forte no eleitorado religioso e que falava com a ala do Tea Party. Era isso que Trump precisava. Ele era um desconhecido, outsider, que precisava de um nome mais velho que pudesse lastreá-lo. Esse nome era Pence”, observa.
“Agora, não. A situação é completamente diferente. Trump é o Partido Republicano. Não é que ele é o grande nome. O trumpismo venceu os velhos falcões do Partido Republicano, a ala tradicional. O Partido Republicano, tal qual conhecemos, de [Ronald] Reagan, de Bush pai e filho, de Cheney, [Donald] Rumsfeld acabou, foi aniquilado. É uma legenda sociologicamente diferente”, diz.
Na avaliação do especialista, trata-se de uma clara sinalização de como seria um possível segundo mandato de Trump, com mais força a movimentos como o Make America Great Again (MAGA) e menos necessidade de composições com os tradicionais “falcões” republicanos, que participaram mais da primeira administração.