Por que convulsões sociais começam por 30 pesos – ou 20 centavos?
Mobilidade é uma experiência de liberdade, de florescimento dos recursos próprios à vida. A alta dos custos coloca as pessoas em isolamento
Os protestos recentes no Chile suscitaram imediatamente nossa memória sobre Junho de 2013 e, mais uma vez, nos inquietam sobre a relação pouco clara entre “pequenos” reajustes no valor do transporte e grandes ondas de indignação social. Assim como aqui não fora “só por 20 centavos”, lá também não é “só por 30 pesos”.
É certo que ambas as convulsões são desdobramentos da crise econômica de 2008, cujos ônus sociais ainda são sentidos hoje e tem esse cataclisma como pano de fundo. Mas há diferenças importantes. No Brasil de 2013, apostávamos numa saída neodesenvolvimentista, com presença forte do Estado como indutor de políticas anticíclicas, com fortes investimentos em infraestruturas e setores considerados estratégicos. Vínhamos de um ciclo de ampliação do ensino público (e privado) e de melhoras no Sistema Único de Saúde. Junho eclodiu porque, mesmo num cenário de crescimento econômico inclusivo, redistributivo, as más condições de vida nas grandes cidades se reproduziam ou mesmo se acirravam. Os padrões de transporte coletivo ainda eram de ineficiência, o sofrimento no trânsito era recorrente e as horas de vida perdidas no transporte somente eram aceitáveis porque foi naturalizado. Estávamos em meio ao maior boom imobiliário já registrado, a alta na compra e no aluguel drenavam boa parte dos ganhos obtidos pelas camadas que vivem de salário. O gasto com o mobilidade já figurava entre os maiores das famílias. Além disso, contribuíam para o descontentamento o fato de que os postos de trabalho criados para as camadas jovens eram os mais precarizados e, ainda, a violência estrutural contra a juventude negra se mantinha alta.
Já o Chile, como sabemos, foi um laboratório neoliberal desde os anos 1970 e, mesmo após a crise desse modelo de desenvolvimento, a saída pós-2008 foi de aumentar a dose do veneno, à despeito das necessidades vitais das maiorias. O sistema previdenciário privado lança os velhos pobres à sua própria sorte – não por acaso o país conta com maior índice de suicídio entre idosos. As condições de trabalho foram flexibilizadas desde a ditadura, há mais de 30 anos. Saúde e educação são privatizado, portanto o acesso a esses só é possível se houver poder de compra.
Mas, por que a alta na tarifa do transporte se torna estopim para uma insatisfação social de tamanhas proporções? Uma primeira razão importante está ligada ao público que funciona como disparador, eminentemente jovem, nascido e crescido nos grandes centros. Trata-se de um estrato relativamente pequeno, mas cujo repertório de ação gera grande impacto rápido. Ocupam ruas e mobilizam as redes de modo contagiosos, ganhando visibilidade pública na grande imprensa. Nesses casos, a juventude volta a encarnar a figura dos que ainda não aceitaram o existente como está, são insubmissos o suficiente para deflagrar os afetos insurgentes e irreverentes; e detêm uma pureza necessária para conseguir sensibilizar outros setores sociais que sentem o quadro de injustiça crescente. A juventude volta a protagonizar a construção do futuro. Isso já não é novo pra nós, basta lembrarmos dos levantes secundaristas de 2015-2016.
Há outras razões que somente são percebidas se entendermos conflitos sociais a partir do espaço urbano, isto é, como a organização do espaço impacta no modo como a cidade é vivida. Ora, direitos fundamentais somente se tornam possíveis se tivermos condições cotidianas de mobilidade. Se não formos capazes de nos deslocar de modo minimamente digno até a fábrica ou o escritório, se não conseguirmos acessar o posto de saúde e a escola, mais entraves se colocam no direito ao trabalho e o direito à educação está bloqueado. As camadas de mais alta renda estão cientes disso e constroem saídas individuais para tornar suas vidas confortáveis: podem escolher onde morar, definir a hora de sair de casa e, portanto, controlar o tempo até o trabalho. Por vezes, conseguem ainda influenciar nos investimentos públicos de modo a garantir que o bairro e a área em que vivem sejam mais valorizados por infraestruturas e recursos. Pobres não são somente os que vivem de força de trabalho, mas também aqueles que não têm controle sobre seu próprio tempo, porque não escolhem onde querem morar, não sabem o quanto exatamente perdem no transporte ineficiente e desvalorizado. É residual o tempo que têm para dedicar ao cuidado de si e dos seus.
Mas há ainda razões mais sutis se entendermos que, atualmente, a mobilidade urbana se converte em mobilidade social. Vivemos num tempo em que o deslocamento e o acesso tem grande valor, fundamentais para o desenvolvimento pessoal e coletivo e são, portanto, bens em disputa. Não por acaso os sociólogos franceses Jean Luc Boltanski e Eve Chiapello argumentam que, “num mundo conexionista, a mobilidade, a capacidade de deslocar-se com autonomia, não só no espaço geográfico, mas também entre as pessoas ou mesmo em espaços mentais, entre ideias, é uma qualidade essencial dos grandes, de tal modo que os pequenos se caracterizam primordialmente por sua fixidez.” Em seguida, reforçam nosso argumento dizendo que “A mobilidade geográfica ou espacial, portanto, pode ser sempre considerada como expressão paradigmática da mobilidade.” Isso porque tão importante quanto produzir objetos é conectar circuitos, formar redes, acessar conhecimentos e centros de decisão. Os processos econômicos são pensados sempre na chave da mobilidade.
Boltanski e Eve Chiapello mobilizaram tais reflexões para pensar novas formas de divisão social e desigualdades no mundo do trabalho: “o diferencial de mobilidade é hoje uma nova mercadoria muito apreciada. Seu preço está subindo com rapidez e é pago exclusivamente pelos ‘lentos’, que assim conseguem que os ‘rápidos’ combinem seu ritmo e desacelerem um pouco”. Nesse sentido, “os rápidos não poderiam sobreviver sem o sustentáculo de atividades sedentárias, e a rede que eles animam não pode prescindir da inserção em territórios nem do trabalho de máquinas e homens, pesos pesados por excelência”.
Embora os sociólogos não o façam, essa chave do “diferencial de mobilidade”, ou então a tensão entre mobilidade e o que é fixo, são muito elucidativas para pensarmos dinâmicas sociais urbanas mais gerais. Por razões políticas um tanto distintas, no espaço urbano também as classes populares enfrentam os ônus da imobilidade enquanto camadas minoritárias de alta renda desfrutam de cidades pensadas perfeitamente de acordo com seus desejos.
Olhando por este lado, nossas grandes cidades são de fato motivo de preocupação, porque soluções urbanas efetivas têm sido colocadas em segundo plano. Basta lembrar que, na São Paulo recente, linhas de ônibus foram suprimidas, passe livre estudantil foi cortado, aumento de tarifas ocorreram acima da inflação. Isso numa cidade em que as pessoas gastam no trânsito, em média, 2h40min por dia e 20% da população chega a perder mais de 4 horas diariamente, o que contabiliza um mês do ano. O transporte segue caro, ineficiente e o padrão de urbanização gera grandes ônus para a maioria da população.
Mas há outro ponto importante que podemos entender desse “mundo conexionista”, marcado por interações e deslocamentos intensificados. Para as gerações que cresceram nesse mundo, a mobilidade é uma experiência de liberdade, de florescimento dos recursos próprios à vida. O aumento dos custos e ônus, o acirramento de dificuldades tendem, por sua vez, a colocar tais sujeitos em isolamento, bloqueio e sofrimento. São vividos como cerceamento e coerção à liberdade já tão mutilada por injustiças. Portanto, se saídas efetivas não forem tomadas, podemos esperar que ações de insatisfação continuem a ter grandes proporções, seja no Chile, no Equador, aqui, ou onde o neoliberalismo age ignorando as maiorias.