Percepção ruim do mundo hoje sobre o Brasil é mais um ‘resfriado do que um câncer terminal’, diz pesquisador de ‘bons países’
No mundo atual, o que torna um país bom? O consultor político britânico Simon Anholt defende que políticos eleitos localmente têm responsabilidade também sobre os desafios conjuntos da humanidade e, portanto, um “mandato duplo”: de servir aos interesses de seus povos e ao mesmo tempo cooperar para a solução dos problemas em comum, em vez de apenas praticarem a “idolatria da competição” entre países.
Simon Anholt é conhecido por dar consultoria a políticos e governos a respeito de como melhorar sua reputação internacional e por elaborar o “Ranking do Bom País” (The Good Country Index), que mede o quanto cada país contribui para o bem-estar coletivo, em relação ao seu tamanho e economia.
Ele também têm um ranking que avalia mensalmente o desempenho de políticos — e que, em novembro de 2019, escolheu o brasileiro Jair Bolsonaro como o pior exemplo de todo o mundo por seu gerenciamento das queimadas na Amazônia.
Anholt acaba de lançar o livro The Good Country Equation – How We Can Repair the World in One Generation (em tradução livre, A equação do bom país — como consertar o mundo em uma geração), com ideias para driblar a nossa dificuldade — a despeito de todo o acúmulo de conhecimento, tecnologia e evolução da humanidade — em fazer o mundo “funcionar bem”.
Em entrevista à BBC News Brasil, Anholt discute a imagem externa do Brasil — e até que ponto devemos nos preocupar com ela —, o descrédito das instituições internacionais, que diz ser culpa do “tédio” e “falta de criatividade” delas próprias e formas de melhorar o cenário político global.
BBC News Brasil – Uma das perguntas que você levanta é: ‘seu país é bom para o mundo?’. Qual resposta você daria para o Brasil neste momento?
Simon Anholt – Para ser sincero, não acho que o Brasil esteja se comportando de modo tão diferente em relação às últimas décadas. Diversas questões políticas e uma figura política em particular, o presidente (Jair Bolsonaro), fizeram as pessoas achar que o Brasil mudou. Não acho que países mudem tão rapidamente ou facilmente (em relação a seu papel no mundo).
O Brasil tem um papel bastante proeminente e útil em sua região e consequentemente no mundo. Sim, tem havido as brigas em torno dos incêndios na Amazônia e mudanças no tom e estilo de governo, mas isso acontece. Na vida total de uma nação, isso são resfriados de algumas semanas, e não um câncer terminal.
O Brasil não é (um pária como) a Coreia do Norte nem corre o risco de se tornar. Ainda é um país fundamentalmente democrático, com uma população que fundamentalmente acredita nos mesmos valores que 90% da população mundial, preocupada com o planeta e querendo viver em paz segurança, como o resto do mundo.
BBC News Brasil – Em que sentido você diz que acha que o país não mudou tanto nas últimas décadas — em termos de valores democráticos e ambientais?
Anholt – Sim, e o papel que o Brasil tem na comunidade internacional em geral, sua contribuição para instituições internacionais, afiliação a órgãos internacionais. Não está fazendo o que os EUA estão fazendo sob Donald Trump, de deliberadamente tomar um curso de distanciamento do sistema multilateral internacional.
E isso provavelmente porque os EUA acreditam, erroneamente, que podem sobreviver sem esse sistema — de que o criou e pode destruí-lo e sobreviver sem ele. É um erro, mas é um sentimento que acho que Donald Trump tem.
O Brasil sabe — e Bolsonaro sabe — que não consegue sobreviver fora do sistema multilateral, não tem tanto poder assim.
BBC News Brasil – No seu ranking de líderes globais, Bolsonaro foi nomeado, em novembro de 2019, o “líder menos bom do mundo” (“ungoodest leader”, no original em inglês). Quais as razões disso e como conciliar com o fato de que ele mantém uma popularidade considerável e é visto como um líder autêntico por seus simpatizantes?
Anholt – Nada dessas coisas são incompatíveis entre si. Os líderes que adotam o populismo — e não uso essa palavra com uma conotação ruim, mas sim como uma escolha política, entre fazer o que acha que é melhor para o país no longo prazo ou atender o que acha que são desejos de seus cidadãos vão acabar sendo populares. A questão é se eles vão ser tão bons em comandar um país quanto foram em ganhar uma eleição. E são coisas bem distintas.
(…) Sobre o ranking do “Bom Líder”: é uma provocação, não é baseado em pesquisas. É basicamente a minha opinião e a opinião de estudantes voluntários (do projeto) ao redor do mundo que me ajudam a fazer isso a cada mês. Ele se baseia na ideia, que eu lancei em 2014, do “mandato duplo”: que hoje, todos os líderes têm de fazer a coisa certa para seu povo, em seu território, e ao mesmo tempo serem corretos com os cidadãos de outros países e o resto do mundo.
Isso é apenas a lógica, uma vez que todos os principais desafios do mundo hoje — das mudanças climáticas, pandemias, proliferação nuclear e desrespeito aos direitos humanos — são compartilhados, e nenhum país consegue resolvê-los sozinho. Então precisamos cooperar e colaborar mais, e por isso as responsabilidades dos governantes mudaram.
O ranking do Bom Líder tenta premiar ou apontar o dedo para o político que, naquele mês, produziu o melhor ou pior exemplo desse pensamento de mandato duplo. Não é um prêmio para o conjunto da obra de um político, analisa apenas aquele determinado mês. Jair Bolsonaro pode tanto figurar como um exemplo de melhor líder, quanto pior.
E naquele o que ele fez muito pouco para conter os incêndios na Amazônia e, em vez de assumir responsabilidade, culpou a mídia. O que achei um bom exemplo de tentar agradar parte da sua população em detrimento do resto da humanidade e do planeta.
O presidente do Brasil tem a custódia da Amazônia, e não acho que naquele momento ele esteve à altura dessa responsabilidade tão séria.
BBC News Brasil – Sobre Trump e o multilateralismo, recentemente o presidente americano disse na Assembleia Geral da ONU: “durante décadas, as mesmas vozes cansadas propuseram as mesmas soluções fracassadas, perseguindo ambições globais às custas de seus próprios povos. Mas só quando você cuida dos seus próprios cidadãos vai encontrar a verdadeira base para a cooperação”. Foi um forte ataque ao multilateralismo e uma defesa do nacionalismo. Você concorda com a fala dele?
Anholt – Eu concordo 100% com a primeira metade dessa fala. Concordo que a globalização seguiu uma agenda errada e causou muito sofrimento, pobreza, desigualdade e conflito, porque deixamos ela sair do controle. E concordo com a análise dele: isso é parte resultado de pessoas que perseguiram ambições globais sem se preocupar com seu próprio povo. (…)
O problema é que na segunda metade Trump fala que o remédio é fazer o oposto: favorecer seu povo e ignorar o resto do mundo. E isso é igualmente ruim, exatamente pelos mesmos motivos.
A verdade, acredito eu, é o equilíbrio entre o nacionalismo e globalismo. Essa ideia de que o globalista e o localista são inimigos é a ideia mais perigosa do planeta, que faz todos nós de tolos. Porque somos todos localistas e globalistas. Todos temos preocupação e ansiedade quanto ao estado do planeta, e também nos preocupamos com nossas pequenas comunidades. O mesmo vale para ideologias políticas, se você é esquerda ou direita. (…)
BBC News Brasil – Há hoje uma grande desconfiança quanto às instituições democráticas. Como reverter isso?
Anholt – É muito difícil reverter, porque as acusações contra elas são absolutamente corretas. O motivo pelo qual passamos a desprezar políticos é porque na maior parte do tempo eles são desprezíveis. Há algo errado na forma como escolhemos, incentivamos e motivamos e colaboramos (ou fracassamos em colaborar) com nossos políticos, (…) desde as ditaduras mais tirânicas, como Belarus, até o Canadá, um país pacífico e democrático.
(…) Pagamos administradores para gerenciar nossas cidades e países e eles não ouvem mais nada de nós. É muito poder para uma pessoa – eles (políticos) não são supervisionados, controlados ou recebem colaboração o bastante, e por isso o mundo está tão ruim. O governo deveria ser apenas uma parte da forma como a sociedade gerencia a si mesma. E cidadãos comuns devem ser parte desse gerenciamento, tornarem-se muito mais envolvidos , não na política, mas na administração. São mudanças grandes, mas necessárias.
Você falou em instituições democráticas. Acho que o erro delas não foi tanto incompetência quanto tédio – elas se deixaram tornar irrelevantes, complacentes, estúpidas, fazendo as mesmas coisas porque é assim que sempre fizeram. Não há coragem, criatividade. E organizações da sociedade civil e ONGs são um sinal de esperança – apesar de tudo, sou muito otimista sobre o estado do mundo (…), em parte porque sei, por experiência, que quanto pior as coisas estiverem, maior é a chance de melhorarem. A vasta maioria da população do mundo é de gente boa e gentil e querem viver em paz.
BBC News Brasil – Voltando a como não podemos depender tanto dos governos, pode me falar mais a respeito?
Anholt – Isso virá de uma mudança cultural, para quando os jovens forem educados quanto ao glamour e a empolgação, mas também a responsabilidade, de participarem do gerenciamento dos locais onde vivem.
Atualmente, crescemos aprendendo que isso não é problema nosso, que é um trabalho para especialistas – como recolher o lixo. ‘Não é nosso trabalho, tem gente para fazer isso’. O mesmo com comandar um país: ”é trabalho de políticos’. E somos hipócritas a respeito: falamos ‘deixe que eles façam isso’, e ao mesmo tempo reclamamos do modo como eles o fazem. (…) Nosso foco deve ser então tornar isso divertido e dar oportunidade pras pessoas se engajarem.
Aqui no Reino Unido temos o Alternative UK (plataforma apartidária de ações para engajar os cidadãos na vida comunitária), baseado (na ideia de) governo das pessoas pelas pessoas. E isso não é comunismo, é ativismo – e não no sentido de atirar pedras em quem discordamos, mas no sentido de engajamento.
Muita gente está descobrindo que isso é divertido, é legal, e muda sua relação com o lugar onde você mora e sua administração.
Primeiro as pessoas têm de ser educadas a respeito, por isso a segunda metade do que eu chamo de “a equação do bom país” defende um grande projeto educacional, de criar um pacto global de valores e virtudes e conhecimentos que concordamos que as crianças das futuras gerações precisarão. Se todos os ministros da educação assinarem isso, e isso for incorporado por cada país, e em menos de 20 anos a humanidade terá mudado.
BBC News Brasil – Como obter tal consenso em um mundo tão polarizado?
Anholt – É tentador pensar que, quanto mais global for a ambição, mais difícil ela será. Defendo começar a olhar isso pela outra ponta: vamos analisar os perigos que estamos enfrentando como humanidade e entrar em acordo quanto a eles.
O melhor exemplo são as pandemias, (um perigo) com o qual todos concordamos, mesmo que discordemos das abordagens. Se partirmos disso e pensarmos em quais dos nossos comportamentos causam (pandemias), e quais deles poderiam ser mudados com a educação, então partimos de trás para frente (rumo à solução) em vez de partir do cenário catastrófico.
(…) Se alguém duvida que a humanidade é capaz de chegar a tal consenso, sugiro lembrarmos do Estatuto de Criação da ONU ou a Declaração dos Direitos Humanos. São dois lindos documentos de se ler, e talvez ainda menos consensuais do que a educação de crianças. E no entanto, quando precisamos, o fizemos e podemos fazer de novo.
BBC News Brasil – Você falou na pandemia, que trouxe tanta colaboração quanto disputa.
Anholt – Além das mudanças climáticas, outro grande problema atual é que a humanidade, nos últimos 50 ou 60 anos, parece ter perdido a habilidade de mudar de ideia. Ninguém mais muda de ideia sobre nada. Se continuarmos assim, estamos f**s.
Porque daí não tem mais sentido em argumentar, discutir, ler livros ou mesmo estudar. Nada tem sentido se você não estiver ao menos disposto a mudar de ideia sobre algo.
Há muito que pode ser feito se estivermos dispostos a mudar de ideia e dialogar corretamente. Sem isso temos o tribalismo, conflito, e a ideia de que tudo tem de ser uma luta de valores ou de identidade, em que um lado perde e outro ganha.
BBC News Brasil – Em uma pandemia, em que as pessoas estão naturalmente mais isoladas umas das outras, isso pode piorar?
Anholt – Sim, e esse é o motivo pelo qual menciono a questão neste contexto: a pandemia é uma lição tão poderosa para a humanidade, mas tudo o que vejo ao meu redor são pessoas usando-a para defender sua agenda prévia.
Todos os que achavam que a globalização é ruim dizem ‘se não tivéssemos globalização, não teríamos pandemia’. Os que defendem a globalização ou o multilateralismo dizem ‘isto prova que precisamos de um sistema multilateral mais forte’. E ambos estão certos, e ambos estão errados.
Mas o meu medo é que saiamos deste episódio com pouca gente mudando de ideia a respeito de qualquer coisa.
BBC News Brasil – De volta ao Brasil, desde as Olimpíadas ou Copa, parece que houve um momento de auge na forma como o país era visto pela comunidade internacional, e agora estamos em baixa, com o desmatamento. Devemos nos importar com isso?
Anholt – Você não deve se importar muito, e algo que observo muito – e governos brasileiros não foram exceção – é que tendem a ficar obcecados com a percepção sobre seus países. Algo que acho impróprio, superficial e errado.
No entanto, uma boa imagem internacional é sintoma de algo muito importante. No geral, se você tem uma boa imagem, você provavelmente é um bom vizinho, valorizado como membro da comunidade internacional. As duas coisas caminham juntas.
Um ponto de virada no meu livro foi uma pesquisa que me mostrou, em dados, que uma imagem positiva internacional é um sinal de o quanto você é útil na comunidade global.
(…) Quando você descreveu a Copa e a Olimpíada e como a imagem internacional brasileira despencou desde então, me ocorre algo que eu já disse que aconteceria: quando o país começou a se alistar para receber esses eventos, o país parece ter caído na armadilha de querer reviver a imagem do mundo sobre o Brasil.
Em vez de identificar por si só o que queria ser como país, ele retomou os clichês brasileiros porque percebeu que samba e carnaval e futebol era coisas amadas, davam-lhe uma imagem mágica.
Em vez de liderar e fazer a opinião pública te seguir, você passa a perseguir a opinião pública. E a opinião pública não gosta de ser perseguida.
Tem um ótimo ditado italiano que diz, se você se faz parecer uma ovelha, vai ser comido pelo lobo. Em vez de de o país ser o que é e ser admirado por isso, começou a buscar a aprovação alheia.
BBC News Brasil – E quanto a ser um bom vizinho, estamos no lugar 72 do ranking de bons países. Temos sido um vizinho pior?
Anholt – Não sei, porque o índice é baseado em estatísticas de 35 conjuntos de dados, que são coletados às vezes quatro anos antes, do sistema da ONU. Não é um retrato de 2020, mas sim de 2016.
Não sei como será a performance (atual) do Brasil. O que é interessante, porque muito da imprensa americana irritada comigo ao ver os EUA no lugar 40° do ranking, perto da Rússia. (Ou seja), os dois países contribuem de modo parecido ao resto do mundo, em proporção ao tamanho de suas economias. Me dizem ‘você é anti-Trump’, e eu respondo: na verdade, a maioria desses dados foi coletada sob o governo Obama.
BBC News Brasil – Isso vai em linha com o que você disse no início, de que países não mudam tanto assim em tão pouco tempo?
Anholt – Na verdade, o índice de bons países é de certa forma volátil, porque se baseia em 35 indicadores, o que não é tanto. Se um país como a Holanda (que está perto do topo) de repente começar a exportar bilhões de dólares em armas para um país destruído por conflitos, pode cair dez posições no índice no ano.
Isso não acontece com a opinião pública, que é muito mais estável.
O que quis dizer sobre o Brasil não ter mudado é seu papel no mundo não mudar tanto de governo para governo. Quando você está vivendo de perto, parece muita diferença. Mas é uma ilusão. O país são suas pessoas, e elas não mudam tanto.
BBC News Brasil – Mas as pessoas ficam mais divididas, não?
Anholt – Acho que essa tendência existe, parece ser de longo prazo e está em linha com a ideia de as pessoas não mudarem de opinião.
E a política, que é o assunto mais tedioso do mundo, e que antes era ignorado, de repente virou algo tão passional. Isso é tão preocupante.
Eu mesmo tenho que lutar todos os dias para não cair nisso, não estou acima desse problema.
Tenho um amigo de longa data e por muitos anos eu sequer percebi que tínhamos visões políticas diferentes. E de repente eu percebi, e tenho que me esforçar para manter a amizade com ele – o que é horrível. Não sei o que mudou em mim, ou nele, ou em ambos de nós. Por anos, isso nunca foi um problema para mim, mas agora me pego desgostando dele por suas visões nacionalistas. Que vírus é esse, e como o pegamos? (…)
BBC News Brasil – Será que é por que passamos a associar essas pessoas aos políticos ou a escolhas políticas?
Anholt – Acho que tem muito a ver com o fato de que a política dos últimos 30 anos se tornou identitária. E identidade é algo muito próximo de nós, então não surpreende que nossa temperatura suba. Falar de política passou a significar falar a linguagem da identidade. Passa a ser um debate de ‘eu sou o tipo de pessoa que…?’.