Como a Argentina conseguiu manter o número de mortes por covid-19 sob controle
Para especialistas, sintonia política entre governantes da situação e da oposição permitiu que fossem adotadas medidas comuns e conjuntas em todo o país
Apesar do incremento de casos do novo coronavírus, nos últimos dias, a Argentina mantém um dos mais baixos números de mortes por covid-19 nas Américas, segundo levantamentos internacionais.
Nos últimos dias, porém, o país passou a veicular um anúncio oficial que surpreendeu a população e que faz parte da estratégia do governo para evitar a propagação do vírus.
Num apelo dramático à “responsabilidade social” dos argentinos diante dos riscos da covid-19, a propaganda mostra imagens do interior de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Nelas, os supostos pacientes estão deitados, imóveis e respirando graças a aparelhos. Enquanto as imagens são exibidas, para alertar para sobre o que o coronavírus é capaz de fazer, são ouvidos áudios de pessoas planejando encontros com amigos e familiares, num sinal de que não estão preocupadas.
“Temos que comemorar. É o aniversário de 70 anos do meu pai. É impossível que a gente seja infectado. Vamos interromper a quarentena”, diz uma voz, no vídeo assinado pela Presidência.
Outra voz sugere uma reunião de amigos da empresa, driblando as normas atuais de controle de circulação veicular. “Cortamos caminho e ninguém vai nos perguntar se temos autorização ou não para circular.”
A mensagem é direcionada aos que duvidam da virulência do coronavírus ou que já se cansaram da quarentena, iniciada há mais de quatro meses, no dia 20 de março, flexibilizada e retomada várias vezes desde então.
Na Argentina, segundo especialistas, a média de idade dos infectados é de 36 anos, porém, como em outros países, são os idosos as maiores vítimas.
Na sexta-feira, ao anunciar que a etapa atual da quarentena será prolongada até o dia 16 de agosto, o presidente Alberto Fernández fez novo apelo para que as pessoas não relaxem diante das ameaças do vírus.
“Estamos atuando de forma adequada, mas temos que ser responsáveis. Aos jovens, que tanto adoro e que têm menos possibilidades de ficarem doentes, mas podem contagiar os mais idosos, eu digo que também sinto saudades dos espetáculos, dos encontros com meus amigos e de tocar meu violão num grupo. Todos sentimos saudades dos churrascos com os amigos. Mas cada encontro desse é um risco. Peço que nos ajudem”, disse Fernández.
A estratégia de comunicação inclui cartazes nas ruas, com mensagens atualizadas de acordo com o desenrolar da pandemia. No fim de semana, surgiu mais um deles. “Não faça reuniões sociais e familiares. Continue se cuidando”, diz um deles, assinado pela Presidência. “Para continuar avançando, vamos nos cuidar”, diz outro, assinado pela Prefeitura de Buenos Aires.
Pesquisas recentes revelaram que a maioria dos argentinos participou pelo menos uma vez de um “asado” (churrasco) ou outra reunião familiar ou com amigos desde o início da quarentena, nas áreas onde os encontros com até dez pessoas ainda não foram autorizados. O fato gerou preocupação no governo porque a curva de casos tem subido nos últimos vinte dias.
A comunicação oficial é apontada pelos médicos e infectologistas como um dos dez pilares que explicam a baixa taxa de mortalidade, até o momento, na Argentina, na comparação com outros países.
Na América do Sul, segundo levantamentos internacionais, a Argentina supera apenas o Paraguai e o Uruguai, com populações menores.
País com cerca de 44 milhões de habitantes, a Argentina registrava, até domingo, 196.543 casos do novo coronavírus e 3.612 mortes, de acordo com dados da Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Com uma população quase cinco vezes maior, o Brasil registra 2,7 milhões de casos positivos e 93.563 mortos, ainda de acordo com a instituição americana.
Os números sobre vítimas fatais também são altos, por exemplo, no Chile e no Peru, com populações menores que a da Argentina.
Com aproximadamente 18 milhões de habitantes, o Chile registra quase o triplo de mortos do país vizinho — 9.608 — e o Peru, com 32 milhões de habitantes, detém cerca de seis vezes mais mortes — 19.408 — que a Argentina.
A BBC News Brasil entrevistou três especialistas para entender os motivos que levam a Argentina a ter, até o momento, uma baixa taxa de mortalidade na comparação com outros países.
O presidente da Sociedade Argentina de Infectologia (SADI), Omar Sued, que integra o comitê especial que assessora Fernández na pandemia, disse que a sintonia política entre governantes da situação e da oposição permitiu que fossem adotadas medidas comuns e conjuntas em todo o país.
Sued, que é diretor de pesquisas da Fundación Huésped, acredita que, apesar do incremento de casos e de mortes dos últimos dias, a Argentina poderia até chegar a não ter um “pico” da doença.
“Talvez a Argentina não tenha esse pico. Com a quarentena, que começou logo no início da pandemia, e teve forte adesão, o país teve tempo para fortalecer seu sistema de saúde. E caso os atuais índices de ocupação de leitos, em torno dos 60% ou 65%, cheguem aos 80%, certamente o governo decidirá pelo retorno da quarentena rigorosa”, disse Sued.
Nas primeiras etapas da quarentena, somente farmácias e supermercados, por exemplo, estavam abertos e até ministros estavam nas estradas nos controles veiculares, junto com policiais, para evitar a mobilidade, inclusive, entre bairros. E avenidas e ruas estavam praticamente vazias, diferente do que ocorre agora.
Ainda assim, oficialmente, no caso dos voos, por exemplo, a grande maioria está suspensa até setembro. Tudo para evitar, argumentam as autoridades do país, a entrada e a circulação do vírus.
“Nós é que vamos ao encontro do vírus, por isso quanto menos saímos, mas protegidos estaremos”, repete o presidente.
Sued afirmou que as pessoas com mais de sessenta anos, as de maior risco para a covid-19, entenderam a mensagem sobre o perigo e respeitaram, na sua grande maioria, o isolamento social — o que também contribui para o número relativamente baixo de mortes no país.
Também influencia de forma decisiva no resultado o fato de o uso de máscaras não ter entrado no debate político, como chegou a ocorrer nos Estados Unidos, onde, disse Sued, a proteção era vista como sinal de respaldo ou rejeição às orientações do presidente Donald Trump. “Isso não aconteceu aqui. E é difícil ver alguém sem máscara no país”, disse.
Quando perguntado sobre o papel dos cidadãos no combate à pandemia, Sued destaca que foi surpreendente.
“Na verdade, somos mais conhecidos por não respeitar muito as normas, mas a coesão entre os governos e a forma como a gravidade da doença foi informada têm sido fundamentais para os resultados.”
Cirurgião cardiovascular do hospital Britânico de Buenos Aires, Marcelo Nahin foi um dos primeiros do país a defender publicamente o uso massivo de máscaras contra o coronavírus. Ele detalhou os outros pilares que explicam o número de mortes.
“A Argentina suspendeu todos os voos nacionais e internacionais, limitou o transporte público para trabalhadores dos setores essenciais (setores médico e de alimentos, por exemplo) e ainda hoje é difícil se locomover internamente pelo país. Como a maior quantidade de casos, em torno dos 87% a 90%, está na Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA), as restrições foram maiores nesta região, até para impedir a circulação do vírus pelo restante do país”, disse Nahin, que é coordenador de transplantes do hospital El Cruce.
O médico citou outras ações diretas que contribuíram para o quadro atual da pandemia na Argentina.
“Esse é um vírus traiçoeiro e toda prevenção possível é necessária”, disse.
No chamado ‘Plano Detectar’, equipes de sanitaristas percorrem bairros buscando casos suspeitos da doença. Quando um caso é positivo, os sanitaristas rastreiam seus contatos, recomendam e oferecem opção de isolamento para os que moram em lugares com muita gente.
A outra justificativa para os números argentinos é a infraestrutura do setor de saúde, que já existia antes da pandemia, e que foi ampliada a partir de março.
Logo no início da quarentena, os hospitais e clínicas separaram entradas e alas para quem chegava com sintomas de coronavírus — como prevenção, os que desembarcavam do exterior eram levados para hotéis pagos pelos governos que chegaram a reunir quatro mil pessoas no total.
Em quatro meses, a Argentina ampliou a quantidade de leitos e agora soma cerca de onze mil enquanto o Chile, por exemplo, tem pouco mais de dois mil, observou Nahin, e este foi um dos problemas do país vizinho.
Mas, ao contrário do Chile, a Argentina realiza um dos menores índices de testes do tipo PCR da região. E esta é uma das críticas do ex-ministro da Saúde Adolfo Rubinstein, do Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária (IECS) e do Centro de Implementação e Inovação de Políticas Públicas (CIIPS).
“O governo acertou ao implementar a quarentena em março e aqui temos uma política nacional, o que não aconteceu no Brasil. Podemos ter diferenças políticas internas aqui, mas há uma política comum de combate à pandemia. O problema argentino é, porém, a quantidade de testes. O governo demorou em comprá-los”, disse o ex-ministro.
Levantamentos apontam que a Argentina realiza 14 mil testes por milhão de habitantes, o Chile faz 81 mil e o Peru, 69 mil exames pela mesma quantidade de pessoas. Rubinstein entende que é cedo para dizer que a Argentina não terá um “pico”, apesar de não esperar que o sistema de saúde entre em colapso, como ocorreu em outros lugares.
Em outro âmbito, levantamento da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), divulgado na semana passada, apontou que a Argentina será um dos países com maior desigualdade neste ano de pandemia.
Críticos atribuem o fato ao efeito prolongado da quarentena. Segundo fontes do governo, a ideia de Fernández é tentar, principalmente a partir de agora, um “equilíbrio crescente” entre o combate ao vírus e a economia, que já estava em recessão quando a covid-19 apareceu.
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