Novo Código Eleitoral pode afrouxar Lei da Ficha Limpa
Congresso corre para tentar aprovar reforma na legislação a tempo de aplicá-la já nas eleições de 2022. Texto abre brecha para manter elegibilidade de político em processo de cassação, desde que ele renuncie.
Se for aprovado, será a toque de caixa. Na terça-feira (31/08), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, aprovou um requerimento de urgência para que a votação do novo Código Eleitoral ocorra nesta quinta, com dispensa das comissões da Casa – acatando pedido de um grupo de parlamentares, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou um prazo de 48h para que Lira explique os motivos de tal urgência.
Com 902 artigos, o Projeto de Lei 112/2021 visa instituir um novo Código Eleitoral no país – o vigente data de 1965. Para valer já para as eleições do ano que vem, a legislação precisa ser aprovada tanto pela Câmara como pelo Senado e sancionada pela Presidência pelo menos um ano antes do primeiro turno, ou seja, antes de 2 de outubro.
Um dos pontos mais polêmicos da nova proposta, atentado por especialistas, é que o texto afrouxa alguns pontos da conhecida Lei da Ficha Limpa. Em vigor desde 2010, a norma, criada a partir de iniciativa popular, serve para impedir a eleição, a cargos políticos, de candidatos condenados por órgãos colegiados.
O cerne da questão está no fato de que, a partir da Ficha Limpa, um político com o mandato cassado passou a se tornar inelegível por oito anos, mesmo que renunciasse durante o processo, quando ainda existia a possibilidade de recursos. Antes dessa lei, tal artifício havia sido utilizado por diversos parlamentares em vias de cassação, como o então senador Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), em 2001, o então deputado Severino Cavalcanti (1930-2020), em 2005, e o então deputado Jader Barbalho, em 2010.
Na proposta que segue para votação, a possibilidade de que parlamentares renunciem para concorrer nas eleições seguintes, livres de impedimento legal, volta a ser aberta. “Eles [os parlamentares] vão tentar impedir a aplicação de um entendimento que se estabeleceu antes [com a Ficha Limpa] de que a renúncia para evitar a punição é ineficaz, de modo que os parlamentares [condenados] acabavam punidos mesmo renunciando”, esclarece o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito.
“E, ao que parece, eles pretendem também diminuir os prazos da ineligibilidade”, prossegue Sundfeld. A ideia do projeto em tramitação é que os oitos anos em que um político condenado em segundo instância fica impedido de se candidatar comecem a contar a partir da condenação – o entendimento atual é que seja após o cumprimento da pena determinada pela Justiça.
Especialista em direito eleitoral e ex-professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o advogado Alberto Rollo critica a forma apressada como o código vem sido debatido – em uma tentativa, por parte de alguns parlamentares, de fazer com que ele possa ser aplicado já no próximo pleito.
“São mais de 900 artigos que estão sendo discutidos de forma atabalhoada, muito rápida, sem ouvir os organismos da sociedade. Acaba virando conversa de doido”, comenta ele. “Se esperamos desde 1965 para um novo código, isso poderia ser feito ao longo de um ano, dois anos, três anos de debates. E não em 60 dias como está sendo feito.”
Mesmo assim, ele acredita que tal reforma é “importante porque pretende dar para o Brasil” um código eleitoral que contemple “situações que o país vive no século 21”. “O atual está defasado, inspirado em outro momento”.
Quarentena e coligações
Entretanto, alguns dispositivos do texto em tramitação têm sido bem-recebidos por analistas. É o caso da determinação de uma quarentena de cinco anos para que militares, policiais, juízes e promotores disputem eleições.
“É um debate bem quente no momento. Hoje, esses agentes públicos podem se afastar de sua função, se aposentar, pedir exoneração e, no dia seguinte, se inscrever num partido e, então, se tornar candidato. Isso tem causado muito incômodo porque essas pessoas têm podido usar seus palanques [durante a carreira profissional] para se divulgar como paladinos da justiça e isso tem provocado certa reação dos políticos que não fazem parte desses grupos”, avalia Sundfeld.
Uma quarentena serviria para arrefecer o impacto de suas imagens frente à opinião pública – “equilibrando mais o jogo eleitoral”, conforme define o jurista. “É uma medida que em algum momento o Brasil tem de discutir”, comenta ele. “Mas suponho que seja complicado aprovar isso hoje por conta das características do presidente atual, com muito aceno aos militares, e também uma tendência de magistrados e membros do Ministério Público que querem, de todo jeito, participar da política.”
Para Rollo, outro ponto positivo é que a proposta em tramitação mantém regras claras sobre fidelidade partidária. Além de reforçar mecanismos para aumentar, gradualmente, a participação de mulheres e negros nas bancadas.
Por outro lado, ele destaca aspectos negativos, como o retorno das coligações nas eleições proporcionais. “Isso acaba dando uma sobrevida para os partidos nanicos, pequenos. E a ideia era justamente o contrário, em 2017 foram aprovadas normas objetivando de alguma maneira a extinção dos partidos pequenos, porque eles atrapalham na governabilidade. Servem para gastar e usar o fundo eleitoral, empregar famílias e grupos pequenos, não servem para a democracia”, argumenta o especialista.
“Outra coisa: se a proposta for aprovada, haverá um afrouxamento na prestação de contas, pois aquilo que hoje é feito por técnicos da Justiça Eleitoral será delegado para empresas contratadas de autoria. Perderá um pouco da credibilidade e a transparência ficará comprometida”, avalia.
Histórico
A primeira legislação eleitoral brasileira é de 1881. Conhecida como Lei Saraiva, ela normatizava o voto direto e secreto para todos os cargos públicos do Brasil Império. Analfabetos, ex-escravos e imigrantes não tinham direito ao voto.
O primeiro código eleitoral, contudo, só entraria em vigor em 1932, com avanços consideráveis à Lei Saraiva – por exemplo, a criação da Justiça Eleitoral, com a instalação do Tribunal Superior Eleitoral. A partir daí o voto passou a ser obrigatório e universal. Novos códigos eleitorais foram decretados em 1935 – tornando o voto obrigatório para mulheres que exercessem atividade remunerada e regulamentando o papel do Ministério Público nas eleições –, 1945, 1950 – qualificando como livre o exercício da propaganda partidária – e o atual, de 1965.