Em meio a disputas, Brasil perde “timing” e sofre atraso para começar vacinação contra Covid-19
Por Pedro Fonseca
RIO DE JANEIRO (Reuters) – Da Arábia Saudita à Costa Rica, doses de vacinas contra Covid-19 estão sendo aplicadas mundo afora no combate à pandemia, enquanto no Brasil disputas políticas e falta de planejamento têm contribuído para atrasar o início de uma campanha de imunização contra uma doença que já deixou mais de 190 mil mortos no país.
Apesar de o Ministério da Saúde ter antecipado de março para o fim de janeiro o início previsto da vacinação no país –após ser pressionado pelo anúncio do governo de São Paulo de que começaria a imunização no Estado em 25 de janeiro–, o Brasil não tem, até o momento, sequer pedido de nenhum laboratório para uso emergencial de vacina junto à Anvisa.
Enquanto segue sem vacina, o Brasil caminha para superar a trágica marca de 200 mil mortes por Covid-19. Até o momento, são mais de 191 mil vítimas fatais da doença, que tem mais de 7,5 milhões de casos confirmados no país. Apenas os EUA registraram mais mortes por Covid-19.
“A gente lamenta muito que não tenhamos feito acordo em um tempo hábil de modo que nós pudéssemos estar mais competitivos em um mercado que é muito duro, porque os países ricos vão na frente”, disse à Reuters a pneumonologista e pesquisadora da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) Margareth Dalcolmo, uma das principais autoridades do país na área.
“O Brasil perdeu o timing adequado desde o final do primeiro semestre, quando todas as empresas que começaram a produzir vacinas, e foram muitas no mundo, começaram a divulgar seus primeiros estudos de fases 1 e 2. Nesse momento, vários países começaram a fazer acordos, e o Brasil naquele momento não fez.”
Enquanto países como Chile e México já começaram a imunizar a população com a vacina da Pfizer, assim como dezenas de nações pelo mundo, no Brasil um jogo de empurra entre o governo federal e a farmacêutica têm atrasado o processo para iniciar a vacinação.
O presidente Jair Bolsonaro tem atacado a empresa por exigir isenção de qualquer responsabilidade por eventuais efeitos colaterais da vacina e por se recusar a ser julgada nos tribunais do país — de acordo com o governo.
Bolsonaro, que já afirmou que não tomará vacina contra Covid-19, chegou a dizer que se alguém “virar um jacaré” por tomar o imunizante, não poderia tomar qualquer medida contra a empresa. O presidente também disse que não se sente pressionado pelo início da vacinação em outros países, e que são os laboratórios que precisam correr atrás de registros de vacinas para vender ao Brasil.
“O Brasil tem 210 milhões de habitantes. Então é um mercado consumidor enorme de qualquer coisa. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que então eles não apresentam a documentação na Anvisa?”, disse Bolsonaro nesta segunda-feira.
Diante do impasse, segue sem conclusão a negociação para compra de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer, suficientes para vacinar 35 milhões de pessoas. O contrato prevê a entrega de 8,5 milhões de doses no primeiro semestre, sendo cerca de 500 mil em janeiro, mas esse cronograma depende da assinatura do acordo.
A Pfizer ainda não pediu o registro emergencial à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) porque, segundo a empresa, o contrato para fornecimento do imunizante com o governo brasileiro ainda não foi fechado.
“A submissão de uso emergencial também pede detalhes do quantitativo de doses e cronograma que será utilizado no país, pontos que só poderão ser definidos na celebração do contrato definitivo”, disse a empresa em nota, acrescentando que continua em negociações com o governo.
Além da demora na negociação, a distribuição da vacina da Pfizer pode ser um problema, uma vez que sua tecnologia inovadora de RNA mensageiro demanda armazenamento em temperatura de -70 graus Celsius.
“O Brasil perdeu 6 meses de organização desse processo de logística. O Brasil vai ter que montar agora. Hoje não existe nenhum local no Brasil com capacidade de armazenamento com grande quantidade de doses de vacina nessa temperatura”, disse a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde por 10 anos até 2019.
O Ministério da Saúde não respondeu a um questionamento sobre os preparativos logísticos para o início da campanha de vacinação.
O plano nacional de operacionalização da vacinação, apresentado pelo ministério este mês após cobrança do Supremo Tribunal Federal(STF), prevê que serão necessárias 104,2 milhões de doses apenas para vacinar os grupos prioritários, que somam 49,6 milhões de pessoas.
Esse contingente seria vacinado ao longo do primeiro semestre. Segundo o documento, o ministério estima que será possível concluir a vacinação da população em geral no período de 12 meses após a fase inicial, o que depende, no entanto, da disponibilidade de imunizantes.
Há também o impacto econômico da demora em se começar a vacinação. O ministro da Economia, Paulo Guedes, reconheceu que só a vacinação em massa da população conseguirá garantir um retorno seguro ao trabalho e retomada do crescimento econômico brasileiro.
CORONAVAC E ASTRAZENECA
Inicialmente fora dos planos do governo federal, a Pfizer passou a ser incluída no programa nacional de vacinação depois que o governador de São Paulo e rival de Bolsonaro, João Doria, anunciou o início da aplicação da vacina CoronaVac no Estado em 25 de janeiro.
A vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac em parceira com o Instituto Butantan, de São Paulo, foi diversas vezes criticada pelo presidente, e o começo da vacinação no país com o imunizante poderia ser visto como uma derrota pessoal de Bolsonaro.
Mas a CoronaVac, que parecia a caminho de ser a primeira vacina a receber permissão para uso no país, também sofre com atrasos. Esperava-se para a semana passada o anúncio da eficácia do imunizante e a posterior apresentação de pedido de registro ao mesmo tempo no Brasil e na China, o que acabou não ocorrendo.
De acordo com o Butantan, que chegou a convocar a imprensa com a promessa de anunciar a eficácia da vacina, o anúncio foi adiado –pela terceira vez– a pedido da Sinovac, que decidiu reunir dados de testes realizados em outros países além do Brasil.
Dimas Covas, presidente do Butantan, confirmou apenas que a vacina teve eficácia acima dos 50% necessários para solicitação de registro. No entanto, pesquisadores turcos disseram também na semana passada que a eficácia da CoronaVac em teste no país ficou em 91,25%, gerando confusão em relação à vacina. Especialistas disseram que as divulgações fragmentadas podem minar a confiança no imunizante.
Agora espera-se para 7 de janeiro o anúncio da eficácia da CoronaVac. Mesmo com os adiamentos, o governo de SP manteve a data prevista de início da vacinação em 25 de janeiro, confiando em obter a aprovação da Anvisa e também na China a tempo.
“Estamos bastante atrasados”, afirmou o ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde Wanderson de Oliveira sobre o início da vacinação no país.
Também para o início de janeiro está previsto o pedido de registro da vacina de Oxford/AstraZeneca, que é a principal aposta do governo brasileiro para imunizar a população — e que também passou por problemas.
O Ministério da Saúde assinou em agosto um acordo de 1,9 bilhão de reais com a AstraZeneca para a aquisição de insumos e a transferência de tecnologia para a produção local da vacina na Fiocruz.
No entanto, o imunizante perdeu espaço na corrida por vacinas para a da Pfizer e ainda ficou marcada por um incidente nos ensaios clínicos que levou a AstraZeneca a realizar novos estudos.
Enquanto a vacina da Pfizer teve eficácia de 95% nos ensaios clínicos, a de Oxford teve eficácia de 62% para as pessoas que tomaram duas doses completas — regime principal dos testes. Em um subgrupo menor que recebeu meia dose e depois uma dose inteira, a eficácia chegou a 90%, o que levou a empresa a retomar os ensaios em busca de descobrir a melhor dosagem.
O registro no Brasil será pedido com base no estudo com duas doses, que, apesar de ter eficácia menor, contou com maior número de pessoas testadas, inclusive no Brasil.
LOGÍSTICA
Mesmo quando conseguir as primeiras vacinas, o país terá um desafio logístico nunca antes visto em termos de imunização, uma vez que estão previstos diversos grupos diferentes de vacinação e três imunizantes simultâneos — sendo que um deles exige super-refrigeradores.
“Não é simplesmente a vacina estar disponível. A vacina é um ponto. A vacinação é diferente. Se não tiver organização e planejamento, não tem efetividade a vacinação”, afirmou Domingues, a ex-coordenadora do PNI.
“Essa é uma campanha muito desafiadora, precisa de muito mais trabalho o que sempre tivemos. São vacinas diferentes, diversos grupos prioritários, com duas doses”, afirmou.
“Você precisa de um sistema para chamar as pessoas, mas como vai identificar as pessoas se só 30% dos postos de vacinação têm acesso à internet? O que estamos vendo são intenções do governo, mas, de concreto, o que esta pronto?”, questionou.