Crianças no celular? Como a pandemia mudou o modo como especialistas veem o uso de telas na infância

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“Eu era uma especialista em tempo de tela. Daí veio a pandemia”, diz, já no título de um artigo publicado no jornal The New York Times, a jornalista Anya Kamenetz, autora de The Art of Screen Time (A arte do tempo de tela, em inglês), livro que a tornou uma fonte recorrente para pais em busca de conselhos sobre como dosar o uso da tecnologia dos filhos.

“Hoje, como Sócrates, eu já sei mais. Sei que nada sei. (…) Eu nunca havia passado tanto tempo com meus filhos, ou com os filhos de qualquer pessoa, quanto nos últimos quatro meses, durante a quarentena. E tampouco pensava em trabalhar em tempo integral enquanto meu marido também trabalha em tempo integral, sem nenhuma ajuda com as crianças”, prossegue Kamenetz.

A pandemia do novo coronavírus bagunçou rotinas como a de Kamenetz e suas duas filhas em idade pré-escolar, bem como a de famílias em todo o mundo.

Isso colocou o próprio conceito de “tempo de tela” em xeque, já que tantas coisas — reunir-se com amigos, falar com os avós ou assistir a aulas — pularam para o ambiente virtual. Fora que o tempo de tela infantil proporciona, muitas vezes, um muito necessário respiro para pais que precisam trabalhar ou cuidar da casa.

“Uma consequência imediata da pandemia é que limites rígidos de tempo de tela — que, em geral, existiam em famílias mais privilegiadas, como a minha — caíram por terra”, escreve Kamenetz.

Aqui no Brasil, a pediatra Evelyn Eisenstein, professora-associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e que ajudou a elaborar o Manual Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital, da Sociedade Brasileira de Pediatria, vê em seu dia-a-dia no consultório os danos que o uso excessivo de eletrônicos pode causar em algumas crianças. E, no entanto, nesta pandemia, não teve alternativa senão manter via telas o contato com a neta de 2 anos e meio.

“A pergunta que tenho feito hoje em dia para crianças e adolescentes no consultório não é mais o quanto tempo passam na tela, mas sim ‘quanto tempo você passa desconectado?’. Considerando que a criança precisa de no mínimo 9h de sono e ficar longe das telas para comer, tomar banho e fazer outras atividades, teria que passar pelo menos metade do dia desconectada”, diz Eisenstein à BBC News Brasil.

As circunstâncias atuais reforçaram uma percepção entre parte dos especialistas: embora seja importante estabelecer limites para o uso de tablets, celulares e computadores por crianças e adolescentes, essa medida por si só não é um parâmetro único em tempos de pandemia.

“A maioria dos pais têm dito ‘eu preciso dos aparelhos eletrônicos, eles têm um propósito para mim e para os meus filhos. Mas o tempo de tela deixou de ser uma métrica útil”, opina Kamenetz em entrevista à BBC News Brasil.

“Mas, então, qual a métrica para determinar o que é válido ou não? Acho que os pais devem usar sua observação.”

Os especialistas consultados para esta reportagem trazem mais dicas para isso, que você lê ao fim deste texto. Mas, antes, é bom lembrar que o conceito de tempo de tela tem razão de existir: foi estabelecido por associações de pediatras de todo o mundo para preservar a saúde das crianças.

As medidas de tempo de tela

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), por exemplo, defendeu, em recomendações publicadas em fevereiro, que crianças de menos de 2 anos não fossem expostas a nenhuma atividade em tela.

Crianças de 2 a 5 anos deviam passar apenas uma hora por dia diante de telas. Para crianças de 6 a 10, no máximo duas horas por dia (e sempre com supervisão de adultos). Para os mais velhos e adolescentes, o limite é de três horas.

Um dos motivos é que sentar diante de telas muitas vezes equivale a consumir conteúdo passivamente, perdendo oportunidades valiosas (principalmente para as crianças menores) de praticar outras habilidades importantes (e mais enriquecedoras) vindas da interação presencial, do contato com a natureza e com os objetos físicos.

Outro é que as telas estimulam a produção de dopamina no corpo, que pode causar dependência ou levar a dificuldades para dormir e transtornos de comportamento, em casos mais extremos. Além disso, o uso das telas, em geral, favorece o sedentarismo, em vez de estimular as crianças a brincarem com coisas concretas e a se movimentarem.

Mas como dar conta disso em plena quarentena e sem a escola?

A SBP atualizou suas recomendações em maio, reconhecendo a importância das telas neste momento, mas pedindo que pais e cuidadores se esforcem para preservar o tempo das crianças para a saúde (mantendo horários de sono e de refeições), para o relacionamento afetivo e familiar que vá além dos eletrônicos, com cuidados redobrados com a segurança e a privacidade online e um tempo “para a família se conhecer, brincar e criar novas formas de interação e afeto”.

Para os menores de 2 anos, o guia defende que as telas devem servir apenas para “uso afetivo”, por exemplo, o contato com parentes.

‘Vida familiar importa mais que tempo de tela’

A Unicef, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) para a infância, publicou em abril um artigo sobre como “repensar o tempo de tela em tempos de covid-19”, levantando a questão: “como as crianças e famílias podem aproveitar ao máximo a crescente dependência das telas — que estão ajudando a manter um senso de normalidade durante a quarentena — e ,ao mesmo tempo, encontrar um equilíbrio com outras atividades importantes?”

O primeiro ponto, diz o texto, é que, na maioria dos casos, evidências robustas recentes indicam que é relativamente pequeno o impacto do uso de telas na saúde mental e no bem-estar infantil.

“Outros fatores, como o apoio dos pais, as relações familiares e as experiências adversas na infância são muito mais impactantes do que o tempo de tela.”

Com isso, a conclusão é de que se deve dar atenção menos à contagem de tempo e mais ao que as crianças fazem online, com quais conteúdos se deparam e que redes de apoio têm fora das telas.

Essa linha de pensamento é parecida com a que foi defendida pela pediatra americana Jenny Radesky, pesquisadora de tecnologia e desenvolvimento infantil na Escola de Medicina Universidade de Michigan, durante o seminário virtual “Covid-19: Tempo de Tela e o Cérebro em Desenvolvimento”, realizado pela Academia de Ciências de Nova York, em 30 de julho.

“Quando sou entrevistada sobre uso de tecnologia por crianças, não quero falar sobre o uso de tecnologia, mas sobre o que a família da criança está fazendo para enfrentar estes tempos tão difíceis: quais são seus valores, suas necessidades e como o uso de mídia pode ajudar ou atrapalhar isso”, disse ela.

Radesky sugeriu que pensemos mais nos processos cruciais para as crianças — na interação entre pais e filhos, na regulação emocional e fisiológica (de sono e capacidade de focar), na capacidade de autonomia e no conteúdo consumido online — do que no tempo de tela.

“Você não consegue inspecionar o cérebro dos seus filhos enquanto eles estão no tablet, mas consegue observar o comportamento deles”, afirmou.

Como fazer um uso saudável das telas?

Voltando, então, ao questionamento de Anya Kamenetz: quais outras métricas podem ser usadas para pais avaliarem se o uso de telas está dentro de limites aceitáveis? Eis algumas dicas sugeridas por especialistas:

1. A tela é útil se ajuda a manter contato com as pessoas. “Durante tempos extraordinários, com um alto grau de incerteza e irregularidade, é vital para as crianças brincar e se comunicar com amigos”, diz a Unicef. Se isso está sendo feito por videogames, videochamadas ou redes sociais de modo a oferecer uma conexão humana, tem valor.

2. Conteúdo mais calmo é mais positivo. Desenhos e games mais calmos ou que proporcionem autonomia em vez de apenas estimular o uso compulsivo são muito melhores para o desenvolvimento cerebral e para o comportamento das crianças, disse Jenny Radesky. “Escolha bom conteúdo, que não seja cheio de conflitos ou comportamentos idiotas”, sugeriu. “Fiz esse experimento com meus filhos. Quando os vi assistindo a um monte de vídeos de Star Wars, com personagens se xingando ou falando coisas irritantes, dei um basta.”

Depois de duas semanas limitando o consumo a desenhos mais calmos, as crianças também estavam mais tranquilas, disse ela. “Eles estavam se alimentando daquele nível elevado de energia. Isso foi com os meus filhos, não estou dizendo que é o que todas as famílias devem fazer. Mas vale prestar atenção em como seu filho está reagindo ao conteúdo.”

Da mesma forma, Anya Kamenetz diz que boa parte do tempo que as filhas passam no tablet é dedicado a ouvir audiolivros ou a assistir a contações de história, que exigem mais esforço do cérebro, tirando-o do estado de passividade.

3. Preserve rituais em família, o sono e o repertório ‘offline’. São as atividades em família — quaisquer que sejam, desde brincar juntos, assistir filmes, cozinhar e conversar — que vão ajudar as crianças a ter resiliência neste momento, argumentou Radesky.

Eisenstein também diz que muitas crianças ficam irritadas na ausência dos eletrônicos porque estão com pouco repertório de brincadeiras “offline”. Elas precisam de um estímulo inicial para ter ideias de como sair do círculo vicioso do uso constante da tela e brincar no mundo real.

As duas médicas são enfáticas ao dizer que a tecnologia é ruim quando atrapalha o sono, crucial para as crianças (e adultos) se desenvolverem e cuidarem de seu sistema imunológico. “Precisa desligar os eletrônicos pelo menos uma ou duas horas antes de dormir, porque a luz das telas bloqueia a produção de melatonina”, sugere Eisenstein.

4. Observe as emoções das crianças. A tela está fazendo mal, mesmo que seja para atividades escolares, quando a atividade não permite intervalos, deixa as crianças mais irritadas e ansiosas ou serve apenas de fuga para crianças em momentos de tristeza.

Ou seja, em vez de lidar com as emoções, um aprendizado que serve para a vida inteira, a criança as suprime com ajuda da tecnologia. Se a percepção dos pais for de que a tela está prejudicando mais do que ajudando a lidar com o momento atual, pode ser hora de buscar ajuda especializada.

Mas avaliar esse cenário exige observação dos pais, diz Kamenetz. “Podemos ter uma criança ficando até tarde jogando videogame, mas ela está solucionando um problema, bolando uma estratégia. É uma atividade intelectual. Outra criança pode estar completamente ansiosa ou depressiva e suprimindo seus sentimentos no uso compulsivo do videogame. Uma terceira pode estar apenas interessada em se reunir com os amigos enquanto joga, é um momento social de escape das pressões atuais. Como pai, olhando de fora, você pode ver a mesma situação: eles estão deixando de dormir porque estão envolvidos com o jogo. Mas, dependendo de o que estiver rolando com a criança, em apenas um dos casos está sendo de fato prejudicial. Nos demais, você pode negociar com eles e dizer ‘acho que é um pouco excessivo, porque quero que você durma, mas entendo que você queira jogar’. Isso exige bastante sensibilidade.”

5. Os combinados seguem valendo, mesmo na pandemia. Autorizar mais tempo diante da tela não tira a importância de fazer acordos prévios com a crianças e adolescentes, seja restringindo o uso dos eletrônicos a apenas algumas horas do dia e flexibilizando no fim de semana, seja conversando sobre conteúdos dos quais os pais não gostam ou discutindo alternativas caso as telas estejam prejudicando o sono ou causando mudanças de humor.

A Unicef defende “estratégias ativas”, como conversar com as crianças sobre sua experiência online e assegurar-se de que estejam usando apenas jogos e redes apropriados para sua idade.

6. Use as telas para atividades físicas. Especialmente para crianças confinadas em apartamentos ou locais pequenos, jogos ou vídeos online que estimulem exercícios são benéficos, diz o artigo da Unicef.

7. Pense no controle de danos. Se não podemos nos dar ao luxo de ficar sem telas, podemos bolar estratégias de redução de danos, defende Kamenetz. No caso dela, com filhas pequenas, isso significa se preparar com antecedência para crises de birra que surgem quando é hora de desligar — e que ela mitiga com muita paciência, lanchinhos, abraços e atividades que ajudem na transição das telas para o mundo offline.

“É ilusório pensar na ideia de perfeição”, diz ela à BBC News Brasil. “Todos erramos, e nossos filhos não serão anjos perfeitos diante no computador. E nós não poderemos impedir, porque estamos fora da nossa rotina e sobrecarregados. Então, precisamos entender que vamos errar, aprender e tentar consertar.”

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Fonte yahoo
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