A maior chaga social do nosso país é o saneamento básico
Tasso Jereissati (PSDB-CE), que é senador desde 2003 e já foi governador do Ceará por duas vezes, não tem receio de afirmar que o projeto mais importante da sua vida pública foi relatar o novo marco do saneamento básico no Congresso, que acabou de ser aprovado no Senado. Tudo porque, segundo afirmou em entrevista à ISTOÉ, a lei vai revolucionar o Brasil e permitir que todos os brasileiros, independentemente da classe social, venham a ter, até 2033, água tratada e esgoto na porta de suas casas. A lei do saneamento básico vai dar condições para que as prefeituras instalem as redes de esgoto para os 104 milhões de brasileiros que não têm esgotamento e de água tratada para 35 milhões de pessoas que não recebem água potável em suas residências. “A maior chaga social do nosso país hoje, com toda a certeza, é o saneamento básico”, diz o senador, que completa: “Para qualquer país civilizado do mundo, ter 50% da população sem esgoto e 30% sem água tratada em casa é uma vergonha”. E só penaliza o mais pobre, cujas crianças crescem pisando em cima do esgoto a céu aberto e contraem doenças graves, como a Covid. Para o senador, a falta de esgoto e de água é a principal marca da desigualdade brasileira.
O que representa a aprovação do novo marco do saneamento, cujo projeto o senhor relatou?
É uma mudança a ser comemorada, mas ainda não é um feito. Antes de colocarmos o projeto em andamento, precisamos atrair os investimentos necessários para que os objetivos colocados no programa sejam alcançados. A maior chaga social do nosso país hoje, com toda a certeza, é o saneamento básico. Para qualquer país civilizado do mundo, ter 50% da população sem esgoto e 30% sem água tratada em casa é uma vergonha. Nenhum índice de país desenvolvido, ou em desenvolvimento, tem números vergonhosos como esses. E o saneamento é a infraestrutura mais básica da humanidade. Não é a eletricidade, não é a comunicação. A estrutura do saneamento básico já foi resolvida na Europa há 200 anos. E nós não resolvemos isso ainda. Já resolvemos boa parte da eletrificação, das comunicações e de rodovias, mas a do saneamento, que tem a ver com saúde, educação, com qualidade de vida, ainda não foi resolvida. A ideia não é privatizar o saneamento básico, é dar opções de investimentos que possam somar o público e o privado.
O novo marco estabelece que até 2033 será universalizado o fornecimento de água para 99% dos brasileiros e o de esgotamento sanitário para 90% da população, mas ele só começa a sair do papel em 2022?
Para se ter esses objetivos bem regulados, estamos dando força à Agência Nacional de Águas (ANA), que já cuida das águas e mananciais, e que já tem um bom quadro técnico, mas que terá que se robustecer para atender os parâmetros das concessões, de qualidade da água e tipo de tratamento de esgoto, fixando normas, para que as agências estaduais, ou municipais, possam fazer suas concessões ou os seus contratos de programa. Tanto um quanto o outro precisarão obedecer os critérios para a execução das obras de saneamento. O marco faz uma diferença entre concessões e contratos de programa. O contrato de programa só pode ser feito entre dois entes públicos, como é hoje. Tem que ser o Estado, entre uma empresa pública e um município, e não precisa ter licitação ou concorrência. Já a concessão pode ser feita pelo Estado com uma empresa privada, e, necessariamente, tem que haver concorrência para se adquirir o direito da exploração dos serviços.
Atingindo-se as metas de universalização, o Brasil entrará para o primeiro mundo, já que a falta de água e de esgotos é uma característica de país subdesenvolvido?
Com certeza. Em primeiro lugar, nos tornaremos um país decente. É indecente termos 104 milhões de pessoas sem esgoto e outras 35 milhões sem água tratada, com crianças pisando em cima do esgoto a céu aberto. Isso não dá nenhuma sinalização de que este é um país que tem uma organização, com estrutura mínima. Colocaremos o país em outro patamar, em termos de igualdade social. Essa é a parte mais visível da desigualdade social no Brasil. Quando dizemos que há desigualdades enormes de renda, essa é a parte mais gritante. Ninguém da classe média ou classe média alta deixa de ter esgoto na sua porta. O muito pobre é que não tem esse serviço. Então, começa por aí. Vamos dar uma estrutura igual a todos.
Não ter água e esgoto é um dos fatores na proliferação de doenças, certo?
Claro, inclusive agora na pandemia isso ficou muito evidente. Os governos e as organizações sanitárias mandam as pessoas lavarem as mãos constantemente com água e sabão e há muita gente que não tem nem água potável em casa. Essa população fica mais exposta a contrair a Covid e as outras doenças. A quantidade de doenças infecciosas que se propagam pelo país é por falta de saneamento básico. É um conjunto de coisas que vai dar outra qualidade de vida à população mais pobre. A produtividade e o nível de educação dos mais pobres vão melhorar sensivelmente.
O projeto de lei aprovado significa que os governos dos estados ou as prefeituras poderão privatizar os seus sistemas de esgoto e água tratada?
Se houver empresas públicas que estejam prestando os serviços e sejam eficientes, elas podem continuar a prestar os serviços normalmente, mas desde que se comprometam a alcançar as metas de universalização dos serviços até 2033. É preciso que elas tenham capacidade financeira de fazer os investimentos necessários para o cumprimento das metas. Elas podem se juntar ao capital privado, a um fundo de investimento, associando-se, ou podem abrir uma licitação para uma concorrência para atrair empresas privadas. Enfim, o marco está dando uma série de opções para o município levar o saneamento básico para toda a população.
A partir de agora, as empresas públicas não terão mais a exclusividade no serviço de água e esgoto?
Deixa de ser monopólio do serviço público, como é até hoje.
Empresas estrangeiras podem participar?
Não haverá nenhuma restrição ou preconceito. Como diz o provérbio chinês: não importa a cor do gato, o importante é que o gato coma o rato.
Já há empresas interessadas?
Muitos fundos de investimentos, empresas estrangeiras que prestam esse tipo de serviço ao redor do mundo. Os investidores gostam muito de aplicar em infraestrutura, porque esse tipo de empreendimento garante certa estabilidade a médio e longo prazo. E não existe nenhum país do mundo, com a dimensão do Brasil, talvez na África tenha, com a oportunidade de investimentos em infraestrutura que o Brasil oferece. Estamos falando de 100 milhões de habitantes que não têm esgoto, que é maior do que qualquer país da Europa Ocidental.
O senhor tem ideia do investimento necessário para instalar as redes de esgoto e de água?
Para alcançarmos os números de 99% da população com água tratada e 90% com esgoto há vários estudos feitos que variam da necessidade de investimentos de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões até 2033. É por isso que estamos dando tanta ênfase aos recursos privados. Os estados e municípios, que já estavam com grandes dificuldades financeiras, sairão da pandemia em situação fiscal ainda mais grave, sem condições de fazer esses investimentos. Se não dermos incentivos para a atração de capital privado, não vamos alcançar as metas.
O PT foi o único partido que votou contra o projeto, alegando que a iniciativa prevê a privatização da água, que é um bem público. Como o senhor vê essa posição da esquerda?
Alguns senadores mostraram essa visão na votação no Senado. A esquerda tem essa dicotomia entre o público e o privado. O PT acha que quem é de esquerda aceita empresa pública e que quem aceita investimento privado é de direita. Essa é uma ideia dos anos 50 ou 60, já está superada. O que interessa hoje é a eficiência. Se a empresa pública é eficiente, ela continuará prestando os serviços. Se ela é ineficiente para fazer os investimentos necessários para atender a população, ela não cumpre seu papel. Esse discurso de setores da esquerda está completamente fora de tempo e de hora.
Por que o programa só começa em 2022?
Primeiro, o projeto ainda não foi nem sancionado pelo presidente. Certamente será sancionado por Bolsonaro. Não sei até por que está demorando tanto. Mas, há uma série da arranjos institucionais a serem feitos. É preciso se dar um tempo para normatizar as licitações, concorrências e definir os blocos de obras em cada estado. Isso demanda um período de adaptação de todos os entes, pois atualmente a maioria dos municípios tem contratos de programa com as empresas estaduais e há um prazo para redefinir atribuições, saber quem quer renovar os contratos ou não. Enfim, há um tempo para adaptação ao novo modelo.
Este ano, a pandemia deve provocar uma recessão de 6% a 9%. O senhor acha que está faltando um plano mais consistente do governo para que o país saia da crise mais rapidamente?
A grande expectativa que temos hoje no governo é com o setor econômico, mas o Ministério da Economia está atrasado em apresentar ao Congresso e à sociedade um plano de retomada da economia mais efetivo, colocando suas metas e projetos prioritários a serem votados no Parlamento, para dar um rumo à economia pós-pandemia, preparando todos os agentes políticos para que façam a discussão adequada já. Estamos muito atrasados nesse processo.
Como o senhor está vendo a série de programas que tentam minimizar a crise, como o auxílio emergencial de R$ 600 em três parcelas? O senhor acha que esse programa deve ser estendido por um novo período?
Esse auxílio emergencial de R$ 600 funcionou para socorrer os mais pobres. Nas cidades mais carentes, já havia sinais de caos e fome, e esse auxílio acalmou a população. A própria economia se reanimou muito com a movimentação desses recursos. Na área de consumo, houve uma certa estabilização e manutenção de empregos. Alguma coisa terá que vir após o fim desse auxílio emergencial. O governo tem acenado com o Programa de Renda Brasil para socorrer os mais desvalidos. Mas é preciso ser dito que as desigualdades sociais ficaram mais nítidas e vieram à tona com muita crueldade na pandemia.
Há uma preocupação também com a sobrevivência das micro e pequenas empresas. É fato que o crédito para socorrê-las não está chegando e muitas podem quebrar?
Assim como o auxílio emergencial para as pessoas funcionou, o crédito para as pequenas empresas não funcionou. Até agora, essas empresas não foram socorridas, e estamos à beira de um desastre muito grande, porque essas empresas são as principais geradoras de emprego. Se elas não conseguirem um fôlego de capital de giro para sobreviver agora, para que possam voltar a funcionar em condições normais no pós-pandemia, não teremos só uma quebradeira sem precedentes, mas teremos um desemprego muito grande, que pode levar até a uma instabilidade social.
Além da crise econômica, vivemos uma grave crise sanitária e política. O presidente vinha participando de atos antidemocráticos e atacando o Congresso e o STF, mas nos últimos dias anda mais moderado. Acha que Bolsonaro se convenceu de que estava equivocado?
Eu peço a Deus todo o dia que o bom senso prevaleça, porque adicionar a todo o panorama de crise sanitária e econômica uma crise política desnecessária é uma verdadeira irresponsabilidade por parte do presidente. Eu rezo todo dia para que essa calmaria que o atingiu na última semana continue. Essa crise nasce, cresce e se desenvolve só pelo comportamento do presidente e seus ministros, sem a menor necessidade. Até para os investimentos, para o marco regulatório do saneamento que nós falamos no início, é necessário que haja uma confiança jurídica e institucional no pais. E do jeito que nós estávamos indo até uma semana atrás, e continuamos, no meio da pandemia, a crise está vulgarizada. Estamos sem ministro da Saúde, por exemplo, apesar de termos nos tornado o segundo país com o maior número de casos de Covid. Para piorar, estamos também sem ministro da Educação. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. É caótico.
O presidente só mudou de postura depois da prisão de seu amigo Queiroz. O senhor acha que essa prisão levou as denúncias de corrupção para dentro do Palácio?
Com certeza isso tudo abateu o ânimo do presidente. Não sei se foi por isso, mas se foi, é bem-vinda essa prisão. Bendita seja essa prisão.
Além da investigação sobre as rachadinhas do filho, o presidente também está acuado pelos inquéritos no STF, um deles sobre a interferência do presidente na PF e o outro sobre os atos antidemocráticos. O senhor entende que o presidente deseja estender a bandeira branca ao STF por temer punições da Justiça?
Eu calculo que sim, mas digo que estou rezando para que essa bandeira branca, e essa mudança de atitude do presidente e de seus ministros, possa ser permanente, independentemente dos processos na área jurídica.
Bolsonaro e seus aliados vinham pregando a intervenção militar e o fechamento do STF. Acha que os bolsonaristas desejam provocar um retrocesso democrático?
Não tenho dúvida. Esse grupo fez essa provocação. Não sei qual é o tamanho desse grupo, mas há três anos eu não imaginava que ele existia com essas características. Para mim, foi uma surpresa. Eles estavam abafados. Mas esse grupo tem características fascistas muito claras. O fascismo é, por definição, totalitário. O fascismo é populista também.
Eles evocam até a instituição de novo AI-5 e reivindicavam, de forma equivocada, a intervenção militar de acordo com o artigo 142 da Constituição. O senhor acha que os bolsonaristas desejam um golpe militar?
Eu acho que esse grupo, e não o presidente ou o governo como um todo, que fez essas manifestações, tem sim todo um modus operandi, e toda uma maneira de agir, do fascismo. Não tenho a menor dúvida, porque o fascismo é autoritário. Mas acho que muitas dessas pessoas, que chegaram a se instalar no governo, ficaram acuadas em função da reação da sociedade brasileira e até dos setores militares.
O senhor acredita que ainda possa haver essa ruptura institucional, que chegou a ser pregada pelo filho do presidente, o deputado Eduardo?
Em certo momento, eu tive medo que essa ruptura pudesse acontecer. Mas percebi que em função das reações da sociedade, da intelectualidade, da universidade, da imprensa e da classe empresarial, isso foi abafado. Não tenho mais medo. Pode haver recrudescimento, tentativas, mas as reações do Supremo e do Congresso foram fortíssimas. Dentro do Senado posso garantir que não havia mais do que um ou dois senadores que defendiam esse tipo de postura.