‘Como superei abusos de pais dependentes de heroína e me tornei professora universitária’

Candidato a livro do ano, 'Poor' conta a improvável trajetória da britânica Katriona O'Sullivan até se tornar doutora na Irlanda

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“Poor” (pobre, em português), a recém-lançada biografia da britânica Katriona O’Sullivan, 46 anos, tem colecionado elogios entre os principais jornais europeus por retratar de maneira autêntica as complexidades da pobreza e do vício em drogas.

Candidato a melhor livro do ano, ele conta, em primeira pessoa, a improvável trajetória da autora, filha de pais viciados em heroína.

Aos seis anos, Katriona achou o pai no quarto, sem calças, após ter tido uma overdose. Quando ele foi preso por tráfico, ela e os quatro irmãos eram obrigados a entrar na prisão com drogas escondidas.

Aos sete, foi estuprada por um homem próximo à família. Quando contou à mãe, ouviu que ele havia abusado dela também.

Katriona virou mãe solteira aos 15 anos, morou em abrigos, trabalhava limpando banheiros públicos e chegou a se entregar ao álcool e às drogas.

Mas sempre teve ao seu lado professores e tutores que acreditavam nela, tornando o livro um exemplo da importância de cuidar do futuro de crianças e jovens, dando-lhes suporte, esperança e oportunidades de valor.

Katriona fazia xixi na cama com frequência e ia para a escola cheirando urina: não tinha sabonete, toalha nem escova de dente em casa.

A professora Katriona O’Sullivan hoje, aos 46 anos
DIVULGAÇÃO

Uma professora a ensinou a se lavar todas as manhãs nos banheiros da escola e guardou uma pilha de calças limpas para ela.

“Ela mudou minha vida”, diz a autora, em entrevista ao The Guardian. “O que ela fez por mim viveu para sempre. Eu era uma criança que estava realmente vazia. Ela me fez sentir bem comigo mesma e isso mudou minha vida.”

Mais adiante, outro professor percebeu que Katriona gostava de ler e lhe apresentou autores como Jane Austen e John Steinbeck.

Foi graças ao aparecimento de pessoas-chave em sua vida que Katriona saiu do buraco e entrou na Trinity College, na Irlanda, por meio de um programa de acesso que encorajava pessoas a voltar a estudar. Lá, virou doutora em psicologia e professora universitária. Casou-se e hoje é mãe de três filhos.

*

Veja abaixo o relato em primeira pessoa de Katriona a um programa de rádio Lives Less Ordinary, da BBC.

Eu posso vê-los claramente. Eles parecem fantasmas.

Desde os meus 5 anos de idade, meus pais pareciam fantasmas, sem vida por trás de seus olhos. Nada.

Eu amava meus pais. E vê-los morrer diante dos meus olhos, desaparecendo por dentro e espiritualmente, foi horrível.

Meu pai era um homem animado, bem-educado e engraçado que havia arruinado sua vida.

Encontrá-lo na cama após uma overdose quando eu era muito pequena foi simplesmente horrível.

Lembro claramente que abri a porta do quarto, ele estava com as calças abaixadas e tinha se injetado. Eu o encontrei despedaçado e meu coração se partiu naquele momento. Era como se eu estivesse fora do meu corpo.

Eu ouvi minha própria voz gritando “papai, papai” e então John, um de seus amigos, subiu as escadas correndo. Ele estava apavorado tentando acordá-lo, mas meu pai estava inconsciente e à beira da morte.

Eu estava ali parada com o que pensei ser o cadáver de um homem que eu realmente amava muito.

O amigo do meu pai chamou uma ambulância e o que mais me impressionou foi como os paramédicos trataram meu pai. Eu pensei que eles estavam ali para salvá-lo, mas estavam bravos com ele. Eu podia ver a forma como eles me olhavam, porque eu era uma garota suja e maltrapilha.

A mesma coisa aconteceu com meu pai. Eles o culpavam e brigavam com ele na cama.

Eu ficava perguntando se meu pai estava morto e eles me ignoravam como se eu não estivesse ali.

A única pessoa que poderia e tinha me amado até então seria tirada de mim. Foi horrível. É um daqueles momentos que estão gravados em mim e nunca vão embora.

Desde minhas primeiras lembranças, era normal ver minha mãe ou meu pai injetando heroína. Eu levantava de manhã e não tinha comida em casa. Se encontrasse um pão e um pouco de açúcar no armário, eu fazia um sanduíche de açúcar: pão, açúcar, pão.

Sempre havia pessoas dormindo na casa. Pessoas que ficaram após a festa da noite anterior. Pessoas que eu conhecia, pessoas que eu não conhecia. Chutar latas pelo caminho, ver queimaduras de cigarro no sofá, brigas, uso de drogas. Esse era o meu dia a dia.

Um dia eu estava com uma amiga e vi a mãe dela abraçá-la, chamá-la para almoçar e certificar-se de que ela estava bem. Lembro-me de ver isso e pensar: ‘Minha mãe não faz isso. Por que não almoçamos? Por que você não me abraça?’ Naquele momento percebi que minha mãe era diferente. Minha mãe não me amava. E eu pensei que era porque havia algo de errado comigo.

Nós não tomamos banho e isso é um problema quando você vai para a escola. Eu molhava a cama, levantava de manhã e não tinha roupas limpas. Não escovava os dentes, quase não penteava o cabelo. Ia para a escola provavelmente com as mesmas roupas do dia anterior, com a mesma calcinha e, obviamente, cheirava a urina.

As outras crianças não queriam brincar comigo porque eu fedia.

    *

Bateram na porta e meu primeiro pensamento foi: “Não, estou encrencada!”

“Seu pai está aqui?”, perguntou o Sr. Pickering, professor da escola.

Eu sabia que meu pai estava bêbado, que estava bebendo na sala. Eu o chamei, ele veio até a porta e eu me escondi atrás dela.

“Eu esperava vê-lo hoje à noite, O’Sullivan, para uma reunião de pais e professores.

Eu realmente queria lhe dizer como sua filha é incrível, quanto potencial ela tem e como ela é inteligente. Eu realmente acho que você deveria ter vergonha de si mesmo por não apoiá-la mais”, disse Pickering.

Eu podia ouvir a vergonha do meu pai em sua voz.

Este momento em particular, quando aquele entrou na minha casa e desafiou meu pai, foi tão poderoso para mim que sempre serei grata.

Mas com todo o caos ao meu redor, comecei a reprovar na escola.

   *

Eu era uma criança raivosa, uma adolescente rebelde. Eu não deixaria ninguém me dizer o que fazer.

Cometi crimes desde os 13 anos. Ia à escola regularmente, mas também matava aula e andava pelas lojas, bebia, usava drogas nos fins de semana. Fiz todas essas loucuras, mas ao mesmo tempo pensava que tentaria me comportar bem.

Aos 15 anos, apesar das coisas ruins que fiz, ainda era ingênua. Um dia acompanhei uma amiga para fazer um teste de gravidez e me testaram também.

“Katriona, deu positivo”, disse a enfermeira.

“Oh, isso é ótimo. Obrigado.” Eu respondi. Eu pensei que positivo significava algo bom.

“Não, não, não. Deu positivo”, ele insistiu.

“Sim, estou feliz! Obrigada!”

“Katriona, você está grávida.”

Meu Deus. Eu soube naquele momento que nunca mais voltaria para a escola.

Enfrentar os professores com a barriga crescendo não era algo que iria acontecer.

Não aguentava mais. Joguei a toalha.

Fui a uma cabine telefônica e liguei para o meu namorado. Eu disse a ele que estava grávida e a resposta foi: “Você pode me ligar mais tarde? Estou cansado”.

E assim, naquela solidão, me desfiz. Sentei-me, inclinei-me para trás e disse: “Não posso continuar tentando. Isso é o mais longe que cheguei. Isso é o mais longe que cheguei”.

Lembro que um dia cheguei em casa e todos estavam sentados na sala. Eu poderia dizer que algo estava errado porque os olhos do meu irmão estavam vermelhos.

Minha mãe e meu pai disseram que eu não podia ficar lá. “Nós queremos que você vá embora.” E eles me expulsaram.

Esse período da minha vida foi o mais difícil.

Fui morar em um abrigo, onde ninguém me visitava. Eu estava sozinha. Completamente sozinha.

         *

Ouço uma batida na porta, espio pelo olho mágico e é Pickering, novamente me surpreendendo.

“Estou tão feliz por ter te encontrado. Eu organizei tudo. Você pode vir para a escola duas manhãs por semana e fazer suas aulas de língua, literatura e matemática para terminar o ensino médio. Tem uma vaga na creche, então você pode fazer isso.”

Eu realmente queria dizer não. Eu tenho um bebê. Mas aquele homem acreditava em mim —”tenho que tentar porque ele acredita em mim”— e então eu disse sim.

Consegui, mas depois do ensino médio voltei a ser a pobre mulher que era antes e acabei caindo na bebida, nas drogas e no vício, sem poder usar aquele impulso que os estudos me deram para transformar minha vida.

Eu não queria ser minha própria mãe. Eu queria ser melhor. Portanto, ter meu filho me forçou a pensar em como melhorar emocionalmente e na vida.

Naquela época, trabalhava como faxineira na estação de trem. Era o lugar mais sujo que alguém poderia ver em sua vida. Lembro-me de limpar banheiros pensando: é só isso?

Só não conhecia ninguém que tivesse feito algo diferente. Eu não conhecia ninguém como eu que foi para a faculdade. Eu não conhecia ninguém com quem pudesse me relacionar.

Quando morava em Dublin encontrei uma antiga amiga que estudava na Trinity College.

Ela veio de uma família pobre como eu, então pensei: se ela pode, eu também posso.

Fui à sala da diretora do Trinity College, bati em sua porta e ela me atendeu.

“Karen é minha amiga e ela me disse que está estudando aqui. Eu adoro ler e quero mudar de vida”, eu disse, entre gaguejos.

Ela me sentou e me pediu para contar a ela minha história.

Sem saber, aquela era minha entrevista para entrar na faculdade.

Ao voltar para a sala de aula, senti que estava no caminho certo. Eu tenho habilidades, habilidades incríveis. Eles só tinham que me capacitar para que eu pudesse usá-las.

Tive que fazer um curso de recuperação, depois fiz psicologia, me formei com louvor e fiz um doutorado. Após a conclusão, fui convidada pela minha universidade para começar a lecionar.

Em cada palestra que dou, começo com a minha própria história. Conto de onde venho, qual é minha família e como cresci. Essa sou eu.

Eu me sinto diferente, mas também sinto que preciso ser fiel a quem sou e garantir que todos saibam que pessoas como eu podem alcançar o mesmo que todos os outros.

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