O mais belo filme da história do cinema
“Era uma Vez na América” só foi possível porque Sergio Leone (1929-1989) gostava do fedor das ruas. Em 1971, Leone recusa dirigir o primeiro filme da trilogia “O Poderoso Chefão”, rodada entre 1972 e 1974, para se dedicar a uma empreitada muito mais pessoal. O novo projeto do diretor italiano — que não passava do “good-bye” e só conseguia se fazer entender com os atores e os demais membros da equipe por meio de intérpretes — visava a abordar a formação da sociedade americana a partir da amizade de dois garotos pobres, David “Noodles” Aaronson e Maximilian “Max” Bercovicz. Mas o que Leone pretendia com um argumento tão específico, se não era americano, se nem falava inglês?
Quanto mais se compreende a alma humana, mais se compreende a humanidade. A adolescência de Noodles e Max é marcada pelos pequenos delitos que cometem, junto com outros dois amigos, ora por farra, ora por necessidade mesmo, num bairro barra-pesada da Nova York do começo do século 20. À medida que se envolve com aquele cotidiano torpe, é que Noodles toma pé da miséria que é sua vida.
“Era uma Vez na América” se vale de uma das raras autobiografias de personagens reais ligados de uma ou outra maneira às origens da máfia nos Estados Unidos. Na adaptação fílmica de Sergio Leone para “The Hoods”, do escritor russo-americano Harry Grey (1901-1980), se vislumbra o que viria a ser um dos maiores clássicos da história do cinema, graças a um time afinado e composto pelos profissionais mais talentosos de todos os tempos. O montador Nino Baragli, disputado por Leone e Pier Paolo Pasolini (1922-1975), contava mais de 200 trabalhos no currículo quando requisitado a verter em formato comercial quase dez horas de gravações. A primeira etapa da odisseia resultou em dois filmes de três horas cada. O passo seguinte foi infinitamente mais complexo: reduzir esses dois produtos num só. A versão final do longa conta com 3h40 de duração, muito longe do que se convencionara a fim de não entediar plateias mais vulneráveis. Houve alguma estridência por parte de distribuidores e das quatro produtoras envolvidas na realização, mas o diretor bateu o pé: era isso ou nada. Felizmente, mesmo em tempos sem redes sociais ou outras ferramentas que encurtam a distância entre artista e público, a decisão de Leone foi acatada.
A trilha sonora de Ennio Morricone (1928-2020) é um capítulo à parte na grandeza de “Era uma Vez na América”. O mestre foi o responsável por “Poverty“, que povoa o inconsciente de qualquer um que se interesse por cinema, ainda que nunca tenha ouvido falar de Leone, de western spaghetti ou mesmo do próprio Morricone. Uma das composições mais bonitas do maestro, a força da orquestração de “Poverty”, tema do personagem de Robert De Niro, passou ao largo do Oscar por uma falha da burocracia de Hollywood, num lance dos mais inacreditáveis dos bastidores do cinema. A natureza épica do filme é destacada pelo gênio de Morricone, que imprime o vigor de seu estilo ao andamento da narrativa. Em timbres ora em crescendo, ora quase sumindo a depender do momento em que a história se encontra, a música abraça o espectador.
A propósito de sentimento, é por meio de Noodles que o público tem a exata noção do que é “Era uma Vez na América”. Os arcos dramáticos do personagem são de tal maneira pujantes que despertam em quem assiste a necessidade de prestar um pouco mais de atenção à própria vida. A trajetória farsesca do protagonista ricocheteia na plateia e é nesse ponto que o enredo cresce. Qualquer um pode se descobrir parte de uma inominável mentira, tão convincente que dura por décadas. A partir daí, Leone bota a mão na massa como gosta de fazer a fim de elaborar a maneira mais original de encaminhar-se para o desfecho. Não há lugar nem para tanto drama, nem para suspense em exagero, tampouco para tragicidade afetada, ou o filme todo restaria perdido, vítima do burlesco de que se esquivara desde o primeiro minuto. Noodles é talvez o anti-herói mais arrependido, mais mal-resolvido que um filme já dera à luz. Acaba e se reinicia, feito um uroboro da mitologia celta.
“Era Uma Vez na América” é um filme de silêncios, muito diferente de produções congêneres a exemplo de “Gangues de Nova York” (2002), de Martin Scorsese, ou “Scarface” (1983), de Brian de Palma. Os 30 minutos iniciais são quase mudos, e Baragli volta a entrar em cena com um recurso bastante peculiar, movimentando as três grandes fases da história com o uso do toque de um telefone. Da incipiência do século passado, a trama pula para os anos 1930, quando ainda vigia a Lei Seca nos Estados Unidos, e posteriormente vai para os 1960, documentando o regresso de Noodles ao Lower East Side, de onde foi impingido a sair depois que sua fama de delator se espalhou pelo bairro. Noodles teria mesmo denunciado os três colegas de delinquências, mortos pela polícia? Sua figura amoral sugere que seria de fato capaz de tamanha vileza, e o filme se constitui um grande provocador ao questionar os limites éticos da audiência. Do ponto de vista da estética, Sergio Leone se esmera em registros poéticos da ponte do Brooklyn, espécie de cartão de visita do filme, mas igualmente marcação do tempo narrativo, usando imagens que denotam o passar dos anos.
O aspecto de documento sociocultural de um povo é ressaltado em “Era Uma Vez na América” quando Leone, um europeu orgulhoso de seu berço, se atreve a avaliar o americano e sua ânsia desenvolvimentista, capitalista, composta do materialismo mais rasteiro e sem propósito e, por paradoxal que soe, o niilismo que isso, no fundo, encerra. Os quatro moleques encardidos e malvistos tinham por ideal de vida ser justamente isso: párias. O quarteto vai perdendo o lirismo desditoso que poderia ter para mergulhar de cabeça na marginalidade crua, sangrenta, tão característica da belicosidade da América. Os Estados Unidos sempre estiveram se metendo em guerras e as vencendo — com exceções pontuais, a mais flagrante a Guerra do Vietnã (1955-1975), sendo que o êxito das incursões no Iraque e no Afeganistão ao longo dos anos 1990 e durante a primeira década do século 21 não são, definitivamente, pontos pacíficos —, o que se espelha na natureza mesma do seu povo. A democracia nem sempre é tomada como o único recurso a fim de se dirimir conflitos, haja vista a passagem em que os protagonistas enfrentam o sindicato, ao qual não se permitem subjugar. Uma crítica de como se fazia — e se faz — política, nos Estados Unidos e mundo afora, dia a dia mais pertinente.
Pleno de referências a outros figurões do cinema, como Kubrick (1928-1999) e Antonioni (1912-2007), “Era Uma Vez na América” é um testemunho de que a humanidade é mesmo um caso perdido e que uma possível evolução é a mais delirante quimera. O descanso para a alma ainda em vida só vem aos que se prontificam a um exame de consciência rigoroso, sem lacunas para tergiversações. Que falta faz um Sergio Leone.