Atentado ao Porta dos Fundos: vamos esperar morrer alguém para conter o fundamentalismo?
Você pode achar sem graça o especial de Natal do Porta dos Fundos. Pode achar sem noção. De mau gosto. Pode achar ofensivo. Pode desligar a TV. Pode entrar em contato com a Netflix e pedir o cancelamento de sua assinatura. Pode até fazer hashtag nas redes sociais explicando em que exatamente o especial te ofendeu e o que colocou suas convicções em risco.
Tudo isso é parte do jogo.
Tudo muda de figura quando a sede da produtora é alvo de um atentado com coquetéis molotov na véspera de Natal, dia em que se celebra o nascimento de Cristo. Chega a ser ridículo dizer o óbvio, mas os tempos não permitem vacilo: o óbvio saiu de órbita faz tempo, e o que não falta por aí é gente relativizando um atentado com papo furado sobre ação e reação.
Se você entrou nessa conversa, você não entendeu nada. Nem da lei, nem de cristianismo.
No país do sincretismo, chega a ser assustadora a velocidade com que algumas bases mais ou menos estabelecidas em tempos remotos começam a ser removidas do jogo social e político.
É difícil não associar a mensagem dos fundamentalistas ao atentado, em 2015, à sede do jornal satírico “Charlie Hebdo”, em Paris. Os terroristas queriam “vingar o profeta” após a publicação de uma caricatura de Maomé. Mataram 12 mortos e deixaram 11 feridos
Coisa de maluco, né?
Mas não acontece só longe daqui. Não mais.
De um tempo pra cá avançam os sinais de que o Brasil está criando seu próprio fundamentalismo.
Quem fez o alerta, em uma entrevista concedida em 2015 (há quase cinco anos, portanto), é o psicanalista Christian Dunker, para quem esse fundamentalismo já tomava forma “a partir desta mistura que estamos vendo diante de nossos olhos entre grupos religiosos que adquiriram uma consciência de sua capacidade de combate, ao modo de milícias da fé, com a estrutura em condomínio de nossas relações de poder no espaço público”.
“Por isso a bancada evangélica não tem verdadeiros opositores, ela é o retorno invertido do que há de pior em termos de intrusão de crenças privadas na esfera pública. Lacan dizia que a metafísica é isso que colocamos no lugar do buraco da política. Ou seja, se a política é este campo que não se fecha nunca, que é constituído por uma impossibilidade radical de a sociedade se fechar na imagem que ela produz de si mesma, a metafísica é este discurso que colocamos no lugar deste vazio estrutural, para produzir uma totalidade coerente, congruente e harmoniosa. Mas esta nova metafísica é sem precedentes porque, aliada ao sistema de produção, deu à luz uma religião de resultados”, disse ele.
Na época, Dunker alertava que a sociedade brasileira havia chegado a uma “ espécie de consenso liberal, no qual a normatividade tradicional perdeu sua capacidade de reproduzir-se”. “Isso tornou algumas áreas antes reservadas à orientação privada de nossas existências uma espécie de axioma inquestionado: o direito de convicção, o direito de individualidade, o direito ao ponto de vista, o direito à expressão. Quando articulado com uma consciência cínica, permite que articulemos a flexibilidade das identidades pós-modernas com o caráter absolutamente inquestionado de nossa moral higiênica, de nossa disciplina da salubridade, com a nossa axiomática religiosa.”
A combinação explosiva está dada. Faltava quem acendesse o pavio.
Se os responsáveis pelo atentado não forem devidamente identificados e punidos, o sinal estará mais do que claro: os limites da lei serão, a partir de agora, uma métrica própria do que cada um entende por limite do humor e da ofensa.
Como em Paris, vamos esperar alguém morrer para passar a risca de giz no chão e dizer que nós, no fim, somos também o alvo?