Detroit, a cidade que o coronavírus derrubou em 72 horas

Pandemia corta de repente a retomada da legendária cidade, símbolo da glória e da decadência industrial americana, berço de gigantes como a General Motors

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Jackie Victor contou a seu pai em 1997 que iria abrir um negócio e o advogado de Michigan gargalhou. Após tantos anos de ativismo, de cartazes e assembleias, sua filha abraçava a fé do converso: “Por fim você se tornou capitalista”, lhe disse. “É que eu —diz Jackie— era uma pessoa muito politizada, radical, e lhe respondi que não, que eu me transformaria em uma empreendedora socialista”. Detroit, uma cidade torturada por mil crises, símbolo da glória e da decadência industrial americana, o berço do fordismo e de Aretha Franklin, empreendia um longo caminho de ressurreição e o seu iria ser um desses projetos que lhe daria vida.

Um café de 180 metros quadrados e quatro funcionários se transformou, com o passar dos anos, em uma rede de quatro restaurantes. Aquele primeiro forno que comprou, em uma empresa fornecedora de pão a uma centena de cafeterias e lojas de alimentação de todo o Estado. Um dia, chegou ao recorde de faturamento: cinco milhões de dólares (30 milhões de reais), um em cima do outro, cinco milhões.

Na manhã de 16 de março, a Avalon International Breads, o pequeno império fundado por Jackie Vitor tinha 153 funcionários. No dia seguinte, restavam somente uma dezena. Uma semana depois, um. Essa maldita primavera, a empreendedora social-capitalista se lembra da conversa com seu pai, do caminho percorrido. “Mas não sinto que eu fechei as portas, que eu demiti alguém, sinto que a pandemia o fez. Foi muito rápido, quando chegou a ordem do fechamento da restauração, todos os pedidos desapareceram. Nós precisamos fechar três dos quatro restaurantes de uma vez, e o que ficou aberto com serviço de entrega tinha somente 10% do serviço costumeiro. A situação também se tornou muito insegura. Dois membros da direção foram infectados, outro tinha febre… Nós nos sentamos com os sócios e dissemos ‘acabou’, pelo menos por enquanto”, diz Jackie.

Tristan Taylor, um dos prejudicados, de 36 anos, passava seu primeiro dia parado em casa em 17 de março e fazia contas. Sua namorada continuava trabalhando em casa, o que eram boas e más notícias. Por um lado, garantia um salário no lar. Por outro, fazia parte do que havia cortado o último fio de vida da Avalon Breads: todos esses profissionais de escritório que formavam o grosso da clientela e que já não passariam por ali para comprar suas focaccias e seus capuccinos. As obras de sua região, um dos bairros da cidade lutando para ressurgir, também pararam de repente. Keith Kendricks, operário da construção de 58 anos, recebeu o aviso de seu chefe na mesma tarde. No dia seguinte, quarta-feira 18, as “três grandes” de Detroit, como são conhecidas a General Motors, a Ford e a Fiat-Chrysler, anunciavam a suspensão de atividade e, com ela, a dos fornecedores de componentes de carros.

E assim, como uma sucessão de peças de dominó derrubando umas às outras, toda uma economia que ia de vento em popa desabou em um prazo de 72 horas.

A hibernação autoimposta em meio mundo para deter a propagação do coronavírus colocou a maior potência mundial diante de seu pior terremoto desde a Grande Depressão. Mais de 36 milhões de trabalhadores pediram o seguro-desemprego desde o começo da pandemia e esse pedaço de terra ao norte do país é um dos faróis vermelhos.

“Costumamos dizer que quando os Estados Unidos ficam resfriados, Michigan tem pneumonia”, afirma Don Grimes, especialista na economia da região da Universidade de Michigan. “As recessões nos atingem com mais força do que o restante do país pela estrutura de nossa economia, muito dependente da manufatura e, especialmente, do automóvel, e em uma crise, isso cai mais do que em outras partes”. Justamente naquele 16 de março Grimes e seus colegas acabavam de terminar o último relatório de previsões macroeconômicas, que não apresentaram.

Agora os Estados Unidos estão com pneumonia e não existem metáforas para Michigan. A equipe de Grimes calcula que a taxa de desemprego chegará 23% no segundo trimestre, um número inédito na série estatística —começa em 1976— e bem superior aos 15% da Grande Recessão de 2009. “O triste é que as coisas estavam indo muito bem até agora”, afirma. “Entre 2009 e 2019, os rendimentos das famílias cresceram 49% no Estado. Em relação à média nacional, havia sido a melhor década da história moderna para Michigan. E, de repente, entramos em um mundo novo”.

Nesse mundo novo, uma quarta-feira, duas horas da tarde, não passa uma alma pela avenida Woodward, a artéria central que melhor reflete o ressurgir de Detroit. Após a quebra municipal de 2013, a maior bancarrota de uma cidade na história dos Estados Unidos, a velha capital do motor havia começado a levantar a cabeça. Lá mesmo, há um século, Henry Ford revolucionou a economia com a produção em cadeia e agora várias startups de tecnologia e de serviços haviam ocupado seus prédios de escritórios, atraídas pelo metro quadrado barato e pela força tratora da indústria automobilística. Os restaurantes vanguardistas se multiplicaram. Dan Gilbert, um milionário da cidade, comprou 70 edifícios no centro e instalou mais de uma centena de empresas. John Varvatos, o estilista de moda masculina de luxo, inaugurou em 2015 uma imponente boutique ao ritmo de rock and roll.

Na semana passada, Varvatos decretou falência pela pandemia. A música já não toca a todo volume no local, fechado e escuro, como todos os dessa rua, agora fantasmagórica. O neon com o lema “Nada detém Detroit” em uma fachada chama a atenção como uma brincadeira inoportuna.

O movimento se mudou para outra parte, concretamente, a igreja batista Pilgrim, no bairro de Grixdale. Quinta-feira, nove da manhã. Faltam três horas para a entrega de comida e se formou uma interminável fila de automóveis, velhos, novos, de todos os tipos. A primeira pessoa da fila, Sabrina, chegou às 7h30. Enfermeira autônoma, tem 47 anos e uma explicação muito simples da interação entre a crise sanitária e econômica: “Atendia a dois pacientes em duas casas e morreram pela covid”, afirma. O primeiro faleceu na mesma semana em que parecia que tudo desabava, o segundo aguentou até o final de março. Após toda uma vida em Detroit, viu passar milhares de recessões, mas esta, diz, é algo diferente “porque tudo dá medo, até falar com você”. Keith Kendricks, o operário, está 20 carros atrás, com a Bíblia no painel, lendo de tempos em tempos enquanto espera para receber sua caixa de víveres, rezando para que tudo passe logo.

“Aqui servimos comida de 400 a 500 famílias e são pessoas de todo o tipo, muitos com salários de 10 dólares (60 reais) por hora, que também não podem pagar tudo”, diz a reverenda Yvette Griffin.

Quase 33% da população da cidade se encontra em situação de pobreza e nesse mesmo dia, a igreja de Saint Peters oferece uma imagem que parece saída de outros tempos. De braço em braço, um grupo de jovens transporta água engarrafada recém-chegada em um caminhão. São os voluntários da We The People of Detroit (Nós o povo de Detroit, em tradução livre), uma organização comandada por Monica Patrick-Lewis que leva água aos lares que não a têm. Após a bancarrota municipal os clientes que deixavam de pagar a conta começaram a ser tratados com dureza. De acordo com Patrick-Lewis, desde 2014 por volta de 170.000 moradias tiveram o fornecimento cortado. “Dizem a essas pessoas que agora precisam lavar as mãos o tempo todo para deter a covid-19 e, pelo menos até agora, não foi feito um plano real para tentar restaurar seu serviço”, afirma.

Michigan é um laboratório perfeito do círculo vicioso entre pobreza e contágios. O condado de Wayne, que inclui toda a área metropolitana de Detroit, é o quinto com mais mortes dos Estados Unidos, precedido somente pelos três no epicentro da pandemia (Queens, Bronx e Brooklin) e pelo condado onde está a metrópole de Chicago, Cooks, no Illinois. O coronavírus se encarniça sobre os afro-americanos e 78% dos habitantes de Detroit o são. No conjunto do Estado, os negros representam 14% da população, mas sofreram 40% das mortes por coronavírus, de acordo com os dados do começo de abril.

Jordi Carbonell, um barcelonês funcionário de uma funerária na periferia da cidade, viu a onda chegar – a famosa curva —em meados de março. “Se o normal era ter vinte defuntos por semana, de repente começaram a chegar 60, 70… mas nem todos eram por covid, talvez um terço, mas o restante do aumento era algo colateral da crise, de pessoas que não tinham o que precisavam”, diz Carbonell, que durante anos administrou a cafeteria Café con Leche na cidade.

Em abril, em plena luta pela pandemia, o Beaumont Health, um dos grandes hospitais do Estado, anunciou a suspensão temporária de 2.475 trabalhadores e a demissão definitiva de 450 pelos problemas financeiros que atravessava. No mesmo mês, o Henry Ford também aplicou um ajuste sobre 2.800.

Tristan Taylor espera ser um dos que recuperarão seu trabalho na Avalon Breads quando o Estado voltar a abrir, mas agora, diz, “é o momento de pensar se é seguro à saúde voltar ou não”.

Sua mãe migrou do Alabama em meados do século XX, como muitos afro-americanos naquela época, que deixaram o sul atraídos pelo boom fabril de grandes metrópoles como Chicago e Detroit. Foi a era dourada em que Berry Gordy, o primeiro grande empresário musical negro dos EUA, fundou a gravadora Motown e revelou fenômenos como The Supremes, Diana Ross, The Temptations. Décadas depois, a robotização das fábricas e as primeiras fases da globalização liquidaram boa parte desses empregos e a população, que em pleno apogeu dos anos 50 superou 1,8 milhão de pessoas, ficou reduzida a menos de 700.000 habitantes.

As antigas casas de arquitetura vitoriana, abandonadas para sempre, mas em pé porque não há dinheiro para derrubá-las, são testemunhas daquela velha riqueza evaporada, como essas fábricas gigantescas e vazias. A cidade estava tentando se livrar desse estigma de Pompeia industrial e se transformar em um polo econômico mais modesto, mas pujante. Mark Muro, especialista em políticas metropolitanas da Brookings Institution, não consegue pensar em “uma maneira mais trágica de acabar a década para Detroit”. “Algo que havia sido conquistado nos últimos quatro ou cinco anos é que a vitalidade do centro urbano já havia se estendido à região. Além disso, a recuperação havia começado a beneficiar os mais desfavorecidos”.

O Governo federal dos Estados Unidos aprovou uma bateria de estímulos sem precedentes na história moderna, com o envio maciço —ainda que pontual— de cheques de 1.200 dólares (7.000 reais) à população, além de aumentar o raquítico seguro-desemprego e outras ajudas fiscais que causaram uma situação paradoxal: há pessoas que recebem mais agora do que quando trabalhavam por um salário mínimo. Mas é uma alegria efêmera. A crise está devorando esses subsídios e a saída é muito incerta. Uma economia não fecha completamente e depois abre como se tudo não passasse de um pesadelo.

Como cenário otimista, a dona da Avalon, Jackie Victor, confia em recuperar 50% de sua atividade até o final do ano. Outras empresas já anunciaram que não voltarão a abrir suas portas, como os cinemas AMC de Southfield, a 20 minutos do centro, um local com 20 salas que abriu no final dos anos noventa.

As fábricas dos três gigantes do automóvel planejam voltar ao trabalho em 18 de maio. Agora, só permanecem um punhado de trabalhadores na Ford e na General Motors produzindo máscaras e respiradores. Os funcionários desses gigantes não se deram tão mal como outros, afetados por suspensões de emprego e, em muitos casos, com uma bolsa de proteção. Mas a parte da guerra real não será conhecida em maio, e sim quando se comprovar quantas pessoas restam com dinheiro disponível para comprar carros. A empresa de análise J. D. Power, referência no setor, calculou em 40% a queda de vendas somente na semana passada.

A ansiedade aumenta em todo o mundo e os Estados Unidos começaram a abrir sua economia há alguns dias apesar da curva de contágios continuar aumentando em boa parte do país. Michigan, um território politicamente de articulação, fundamental na vitória de Donald Trump em 2016, presenciou algumas das manifestações mais agressivas contra o confinamento. Há duas semanas, um grupo de seguidores trumpistas armados com fuzis entrou no Capitólio para protestar contra o prolongamento das medidas de confinamento decididas pela governadora democrata Gretchen Whitmer.

Em Detroit frequentemente dizem que estão tão acostumados a lidar com crises que desenvolveram um know-how próprio para conviver com a tragédia. “O Estado tem estruturas de ajuda mais robustas do que em locais menos acostumados a isso, por exemplo, por isso as pessoas entram com frequências nas listas de desemprego”, diz o economista Grimes.

Um enorme anúncio do show que os Rolling Stones fariam em junho na cidade, levantado justamente entre as ruínas das fábricas, lembra a nova parada da vida. A Ford também paralisou as obras de remodelação na estação central, um dos grandes símbolos do ocaso da velha Detroit. Uma lona promete: “Logo voltaremos a trabalhar no futuro”.

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Fonte elpais
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