Biden defende que EUA não está em recessão; entenda as disputas sobre o conceito
O PIB dos EUA acumulou oficialmente dois trimestres de queda, um cenário de "recessão técnica"
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, rejeitou novamente nesta semana o diagnóstico de que o país já vive uma recessão.
A declaração veio após a divulgação na última quinta-feira, 28, do resultado do produto interno bruto (PIB) do país no segundo trimestre. A economia americana encolheu 0,9% entre abril e junho na comparação anual e 0,2% em relação ao primeiro trimestre, segundo o número divulgado pelo Departamento de Comércio do governo.
O PIB americano já havia caído 1,6% no primeiro trimestre na comparação anual, o que, pela definição, coloca o país em recessão técnica.
A classificação de recessão técnica acontece quando há duas quedas trimestrais consecutivas.
O governo americano, por ora, rejeita esse diagnóstico.
“Saindo do crescimento econômico histórico do ano passado – e recuperando todos os empregos do setor privado perdidos durante a crise na pandemia –, não é surpresa que a economia esteja desacelerando enquanto o Federal Reserve [banco central dos EUA] age para reduzir a inflação”, disse Biden em comunicado na quinta-feira.
“Mas, mesmo enfrentando desafios globais históricos, estamos no caminho certo e passaremos por essa transição mais fortes e mais seguros.”
O que os EUA consideram recessão
A definição para recessão usada pelo governo dos EUA vai além de só dois trimestres de queda, com base no que decreta o National Bureau of Economic Research (NBER), um órgão econômico do governo.
A instituição classifica recessão como uma queda mais ampla na economia, espalhada por vários setores e de forma prolongada.
Por isso, o NBER afirma que esse ainda não é o caso da economia americana, que vive cenário de pleno emprego (a taxa de desemprego está em 3,6%) e consumo tendo crescido 1% no segundo trimestre, apesar da queda geral no PIB.
“Quando se está criando 400 mil empregos por mês, isso não é uma recessão”, disse a secretária do Tesouro, Janet Yellen, neste mês.
O rebote da pandemia
Um dos argumentos do governo também é que, no ano passado, a economia americana teve crescimento recorde com a reabertura pós-pandemia e os amplos pacotes econômicos.
Após ter caído 3,4% em 2020, no primeiro ano de pandemia, o PIB dos EUA em 2021 cresceu 5,7%, recuperando a queda com sobra. Foi a maior alta desde 1984.
Por essa visão, dada a base de comparação muito forte e a inflação que já supera 9% no país (a maior em 40 anos), seria esperado que a economia desacelerasse agora, argumenta Biden.
Outra questão apontada pelos cautelosos em cravar uma recessão americana é que o número de 0,9% ainda deve ser revisado, seja para cima ou para baixo. Essa foi somente a “primeira leitura” do resultado, jargão comum no mercado nos EUA.
Não é recessão, mas está devagar
Mesmo os principais analistas do mercado ainda afirmam que é preciso esperar para decidir se uma recessão americana já chegou.
Ainda assim, é inegável que o primeiro semestre do ano teve saldo negativo para os EUA, mesmo que haja revisões que amenizem os números.
“Não estamos em recessão, mas está claro que o crescimento da economia está desacelerando”, resumiu em declaração à CNBC Mark Zandi, economista-chefe da Moody’s Analytics. “A economia está perto da velocidade de freio: avançando, mas quase parando.”
Esse debate mais filosófico sobre o conceito de recessão não acontece só para a economia dos EUA. O próprio Brasil teve dois trimestres de queda do PIB no ano passado (no segundo e terceiro trimestres de 2021) e chegou ao cenário de recessão técnica, pela definição.
No fim, o país fechou o ano com crescimento de 4,6%. Foi somente um leve ganho após a queda de 4,1% em 2020, mas é difícil encontrar um economista hoje que indique que 2021 foi um tempo de recessão para o Brasil — de economia relativamente estagnada, sim, mas não de recessão de fato.
Para 2022 no Brasil, aliás, a alta das commodities no exterior e a reabertura e vacinação levando ao crescimento do setor de serviços fizeram o cenário virar, e o PIB brasileiro pode crescer 2% ou mais nas principais projeções. (Para 2023, porém, há outras preocupações, como o próprio risco de recessão nos EUA e o efeito dos juros altos.)
Mercado não se abalou com PIB
Um ponto que mostra a complexidade da definição é a reação amena dos mercados com o resultado na economia americana.
O consenso no mercado era de crescimento em torno de 0,5% no PIB, de modo que a queda de 0,9% foi muito pior que o previsto. No entanto, o número não fez a bolsa desabar após o anúncio como se poderia prever.
Os principais índices americanos subiram mais de 1% na quinta-feira (dia da divulgação do PIB), e depois terminaram a semana em alta acumulada de mais de 4%.
Na prática, o que levou às altas nas bolsas foi a leitura de que o resultado mais fraco do PIB pode indicar que a inflação começará a desacelerar e que o Fed, banco central americano, não deve ampliar o ritmo da alta de juros, buscando o chamado “pouso suave” em seu ciclo de aperto monetário. Com isso, as chances de uma recessão no futuro podem inclusive diminuir.
Demissões recomeçam, e agora?
Por outro lado, ainda que somente dois trimestres possam não ser suficientes para colocar a economia americana em recessão, a grande discussão segue sendo para onde os EUA caminham no futuro próximo.
O governo Biden tem apontado com frequência para o mercado de trabalho para argumentar que uma recessão não está contratada, somente uma desaceleração.
O número de pedidos de seguro-desemprego (um sinal de demissões) subiu nas últimas semanas nos EUA, o que mostra que o mercado de trabalho, após alta nas contratações e nos salários em busca de atrair empregados, pode estar pisando no freio.
Alguma retração no mercado de trabalho era até mesmo desejada pelo governo, de modo a conter a inflação.
Mas os riscos nessa transição estão por toda parte. A inflação é global e pode não arrefecer da forma clássica com uma alta somente leve nos juros, diante da guerra na Ucrânia e o choque de oferta. O desafio do Fed será conter a inflação via juros (já foram quatro altas só neste ano) sem levar a economia do país à recessão de fato – essa, sim, muito além de meros dois trimestres de queda.
Enquanto isso, a maior parte da população americana já enxerga a economia do país como “em crise”, segundo pesquisas de opinião. A popularidade de Biden está em seu pior momento, uma conta que deve chegar ao governo e ao Partido Democrata nas eleições legislativas de novembro.
O que acontece nos EUA ainda não pode, para a maioria dos analistas, ser chamado de recessão. Mas a dúvida — do Fed à Casa Branca e aos mercados pelo mundo — é se chegar lá não é só questão de tempo.