Somos LGBTs e somos a imagem e semelhança de Jesus, queiram ou não os fundamentalistas
“Sede, pois, vós outros, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial.” São Mateus 5:48.
Quando eu era adolescente e participava de mocidade espírita (uma espécie de catecismo católico ou escola dominial protestante), vez ou outra era convidado para interpretar Jesus em algumas encenações amadoras.
Acreditava-se – e obviamente que hoje não acredito mais nisso – que parecia (fisicamente) com o Jesus dos europeus: loiro, olhos verdes, barba e cabelos compridos.
Sejamos francos: se Jesus existiu e viveu no lugar em que a Bíblia relata, certamente ele não era branco.
Creiam ou não, na Bíblia não há qualquer descrição da aparência física de Jesus, muito menos de sua orientação sexual ou identidade de gênero – mas sobre isso falarei mais adiante.
Há quem defenda que o Jesus branco foi invenção de turcos e macedônios, que criaram igrejas retratando Cristo com olhos escuros, cabelos castanhos e pele mais clara que a dos palestinos. Já com o Renascimento italiano, popularizou-se um Jesus caucasiano e de olhos claros.
Vivi durante muito tempo com essa marca, que ostentava com prazer, já que assemelhar-se (não só fisicamente) ao Cristo de Deus, para mim, era (e ainda é, só que ressignificado) motivo de muita honra.
Mas será que os mesmos que me convidavam, se soubessem da minha orientação sexual, manteriam o convite?
Se Jesus Cristo fosse LGBT+, se afastariam os fanáticos e fundamentalistas? Iriam crucificá-lo novamente?
Jesus se manifesta no corpo trans espancado, no corpo negro assassinado, no corpo feminino violado, no corpo gordo satirizado e no corpo favelado exterminado.
Antes mesmo de toda essa perseguição – que devemos repudiar com veemência – ao especial do Porta dos Fundos, a amiga, atriz e travesti Renata de Carvalho, que interpreta Jesus no monólogo “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu” (um dos espetáculos mais lindos e emocionantes que já assisti sobre a vida de Cristo), já sofria com a censura e violência. Renata recebeu ameaças de espancamento e morte, precisou encenar trajada com um colete a prova de balas e sobreviveu a uma bomba atirada no palco onde se apresentava, em Garanhuns, Pernambuco.
Escrito pela dramaturga escocesa Jo Clifford, o monólogo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” mistura depoimento e contação de história baseada nas passagens bíblicas, para tratar de opressão e intolerância, especialmente a sofrida pelas travestis, mulheres transexuais e homens trans.
A atriz de 39 anos que começou no teatro ainda adolescente nos anos 1990, destacou-se na cena de Santos (SP) principalmente por papéis femininos em montagens de grandes nomes da dramaturgia mundial. Embora todo reconhecimento da crítica e dos prêmios recebidos, Renata sempre enfrentou dificuldades para encontrar papéis.
Obrigada a permanecer fora dos palcos por mais de dez anos, dividiu-se entre a função de diretora teatral e de agente de prevenção e assistência a travestis e transexuais de São Paulo. Além disso, trabalhou como maquiadora e cabeleireira. Em um dos momentos mais nebulosos desse processo de afastamento, como ela mesmo contou em entrevista ao jornalista Leonardo Rodrigues do UOL, precisou se prostituir.
É fundadora do Coletivo T, voltado apenas para artistas transgêneros e participou da criação do Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans), que luta pela representatividade em espaços da arte.
Sem restar dúvidas, a querida amiga Renata, é, na atualidade, uma das principais atrizes trans e uma das principais vozes da militância LGBT+.
Vivemos tempos difíceis, em que os radicais, fundamentalistas e conservadores estão percebendo a sua derrocada sem volta. Toda essa violência por parte dos cristãos (sem Cristo) e dos cidadãos de bem, nada mais é do que uma reação ao levante da justiça, da diversidade e do bem viver.
Assim como outras comunidades de fé, o movimento espírita foi invadido por uma onda conservadora e retrógrada, mas na mesma intensidade ou até maior, existe resistência e iniciativas brilhantes.
Nós, os espíritas progressistas – e há quem diga que é redundante essa afirmação, já que o espiritismo por si só é progressista – temos pesquisado, difundido e incentivado experiências espíritas que resgatem o papel histórico de Kardec, valorizem a diversidade, debatam problemas da atualidade (LGBTfobia, machismo, racismo, sexismo, xenofobia, intolerância religiosa) e, acima de tudo, viva um cristianismo plural, dialógico e amoroso, dentro e fora da casa espírita.
Como já venho dizendo em outros artigos, não há – assim como na Bíblia cristã – em todos os escritos de Kardec, uma linha sequer contra LGBTQI+. Se o fazem em nome do espiritismo, fazem baseados em suas próprias convicções, suas crenças e suas leituras – enviesadas – de mundo e da sociedade. E na contramão dos ensinamentos de Cristo.
A doutrina espírita repudia qualquer tipo de preconceito e discriminação LGBTfóbica, dentro ou fora das casas espíritas, utilizando-se de argumentos pseudo-religiosos ou mediúnicos para oprimir, violentar, excluir e estigmatizar.
Acreditamos que o espiritismo pode ter papel fundamental na superação das intolerâncias, cumprindo sua missão de agente transformador, encampando discursos de acolhimento e amor, respeitando a diversidade, as identidades de gênero, as orientações sexuais e apoiando aqueles/as que procurarem os centros e comunidades espíritas.