PEC dos Precatórios: entenda a proposta que tramita na Câmara
Já houve tentativa de votação, mas o projeto sofre resistência. Governo espera usar a proposta para viabilizar o Auxílio Brasil
Em tramitação na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição nº 23 foi protocolada pelo governo federal na Câmara dos Deputados em 10 de agosto deste ano. Assinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o projeto, atualmente, é a grande aposta do governo para um alívio financeiro que resulte em recursos para a execução do Auxílio Brasil, uma nova formatação do Bolsa Família. Apelidado de PEC dos Precatórios, o texto passou por algumas alterações dentro da Câmara e ainda não tem acordo para aprovação.
A intenção da base governista é pôr a proposta para votação nesta quarta-feira (3), mas o texto ainda enfrenta resistências. Exemplo disso é o fato de ser a terceira tentativa de votação: as outras duas foram frustradas por falta de quórum, um claro recado de que não havia acordo para votar o texto. Na semana passada, os ministros Ciro Nogueira (Casa Civil), Flávia Arruda (Secretaria de Governo) e João Roma (Cidadania) se reuniram com os líderes de bancadas da base e do Centro e pediram a presença dos parlamentares no plenário nesta quarta.
As lideranças saíram da reunião com a missão de levar as bancadas em peso para a sessão. Acontece que é um pós-feriado, quando o Congresso costuma ficar esvaziado. Uma quantidade grande de deputados presentes é importante, tendo em vista que se trata de uma PEC, que exige ao menos 308 votos favoráveis para aprovação. Como a oposição já informou que votará contra, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), só deve pôr o tema em votação se pelo menos 490 deputados estiverem presentes.
Na prática, a PEC 23 pretende postergar o pagamento de precatórios pela União. Atualmente, a dívida prevista para 2022 é de R$ 89,1 bilhões. O que o governo quer é não precisar desembolsar a quantia e, assim, abrir respiro financeiro para o programa social Auxílio Brasil. Para isso, a proposta estabelece um “teto” da quantia máxima a ser paga em precatórios no ano que vem — o valor seria de aproximadamente R$ 41 bilhões.
Na proposta original, o governo pretendia adotar uma regra de parcelamento para o pagamento dos precatórios, que são dívidas da União já transitadas em julgado. A ideia era que valores acima de R$ 66 milhões pudessem ser sempre parcelados, além da possibilidade de uma regra transitória, até 2029, possibilitando também o parcelamento das dívidas acima de R$ 66 mil. A proposta original prevê um Fundo de Liquidação de Passivos, com recursos obtidos pela União a partir de venda de ativos, especialmente privatizações, para honrar com os precatórios.
Já o substitutivo do relator, apresentado no último dia 21, insere o pagamento de precatórios dentro dos dispositivos da Emenda Constitucional 95, promulgada em 2016, que estipulou o Teto de Gastos da Administração Pública. A medida vale por 20 anos. Sendo assim, o substitutivo que vai para a apreciação dos deputados estabelece um limite para expedição e pagamento de precatórios, prevendo que a despesa paga a esse título seja corrigida a partir do ano de 2016 pela inflação.
Com isso, o governo, que teria quase R$ 89,1 bilhões para pagar em precatórios no ano que vem, conseguiria abrir um espaço fiscal de aproximadamente R$ 48 bilhões, segundo cálculos do Executivo. Somando isso à folga gerada pela mudança no cálculo do Teto de Gastos, alteração alvo de muitos questionamentos que também é prevista na proposta, o alívio no orçamento do próximo ano pode chegar a R$ 91,6, bilhões.
Confira ponto a ponto a proposta que pode ser votada nesta quarta.
A proposta original previa uma regra permanente para parcelamento de precatórios com valores acima de R$ 66 milhões. Atualmente, a União pode pagar de forma parcelada apenas dívidas que superem 15% do valor anual previsto para esse tipo de despesa. Por exemplo: caso o total de pagamento para precatórios seja de R$ 100 bilhões, apenas valores acima de R$ 14 bilhões poderiam ser parcelados pela União, dificultando a medida por parte do governo. Além desse parcelamento permanente, o governo sugeriu uma regra transitória, até 2029, estipulando que o pagamento anual de precatórios não ultrapasse 2,6% da Receita Corrente Líquida. Sendo assim, em valores atuais, pagamentos acima de R$ 66 mil também poderiam ser parcelados, sendo 15% de pagamento à vista e outras nove parcelas.
O relatório feito pelo deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) prevê um teto para os precatórios, deixando de lado a possibilidade de parcelamento, como previa a proposta do governo. O documento do parlamentar estabelece o limite da despesa paga a esse título no exercício de 2016, quando foi promulgado o Teto de Gastos, corrigido pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior.
Para 2022, é grande a incerteza em relação à despesa primária. O orçamento dos precatórios para o ano que vem é de R$ 89,1 bilhões, conforme o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa). Um Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) da Instituição Fiscal Independente (IFI) apontou que a retirada de despesas com precatórios do teto abre um espaço fiscal de R$ 48,6 bilhões.
“Qualquer uma dessas soluções, mesmo incorporada na Constituição, não anularia os efeitos negativos sobre as expectativas dos agentes econômicos e, consequentemente, sobre a taxa de câmbio, a inflação e os juros. Essa apreensão já aparece nos juros precificados, hoje, pelo mercado, para diferentes prazos, afetando a dinâmica da dívida”, aponta o relatório. Estimativa do Ministério da Economia divulgada no fim do mês passado apontou que a PEC abriria um espaço no orçamento do próximo ano de R$ 91,6 bilhões para novas despesas, levando em consideração a redução do pagamento com precatórios e mudança no Teto de Gastos.
Há críticas de que, no formato atual do projeto, continuará ocorrendo atraso no pagamento dos precatórios, da mesma maneira que ocorria na proposta original de parcelamento. Presidente do Instituto Brasileiro de Precatórios, Gustavo Bachega afirma que o substitutivo do relator não especifica parcelas e “faz um jogo de palavras para confundir a votação”.
O texto propõe o parcelamento de dívidas dos municípios com a previdência em até 20 anos em casos de débitos até 31 de outubro de 2020, respeitando alguns requisitos, como a “adequação da alíquota de contribuição devida pelos servidores” e a “instituição do regime de previdência complementar e adequação do órgão ou entidade gestora do regime próprio de previdência social”.
O projeto também autoriza o parcelamento de débitos dos municípios com previdência com vencimento até 31 de outubro de 2021, ainda que em fase de execução fiscal ajuizada. Neste caso, os débitos parcelados terão redução de 40% das multas de mora, de ofício e isoladas; de 80% dos juros de mora; de 40% dos encargos legais e de 25% dos honorários advocatícios.
Análise feita pela IFI aponta que o mecanismo é preocupante. “Poderá ter efeitos não desprezíveis nas contas públicas municipais, sobretudo se os parcelamentos ocorrerem em benefício de abertura de espaço orçamentário para elevação de gastos correntes”, explica documento elaborado pela instituição em 7 de outubro.
O relatório prevê que os parcelamentos deverão ocorrer até 30 de junho do próximo ano e estarão condicionados à autorização de vinculação do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), uma maneira de garantir os pagamentos. Esse trecho conta com o apoio dos municípios e, por não ter relação com precatórios, é avaliado pela oposição como um “jabuti”; uma maneira de fazer com que a PEC tenha apoio dos prefeitos.
Gustavo Bachega afirma que o trecho não tem relação alguma com o restante do projeto. “Aí começa um favorecimento que talvez não deveria ter. Por isso estamos chamando essa PEC de eleitoreira”, diz.
Securitização é uma dívida negociada com investidores — é como passar para a frente uma dívida que está difícil de ser recebida. Investidores pagam uma quantia menor para ir atrás do direito de receber os valores. A PEC 23 abre espaço para securitizar recebíveis da dívida ativa. O trecho, que não tem relação com precatórios, é alvo de críticas de entidades, como a associação Auditoria Cidadã da Dívida.
O grupo ressalta que a proposta autoriza a vinculação de receitas de impostos ao pagamento dos recebíveis gerados pela securitização, fora do controle orçamentário e mediante desvio do fluxo de arrecadação tributária.
“Ao contrário da propagandeada ‘solução’ para os créditos incobráveis de Dívida Ativa que os entes federados não conseguem receber, o esquema gera uma nova dívida, que passa a ser paga por fora dos controles orçamentários, como se fosse um empréstimo ‘consignado’, desviando os impostos pagos pela sociedade”, pontua a associação.
A associação explica ainda que a dívida continuará sendo cobrada pelos órgãos da administração tributária, “enquanto os recebíveis (derivativos ou debêntures) emitidos nesse esquema da denominada securitização serão vendidos ao mercado, que passará a se apoderar diretamente da arrecadação dos tributos”.
A Constituição Federal já prevê o uso de precatórios para a compra de imóveis públicos. O projeto quer a ampliação dessa possibilidade também para a compra de participação acionária em estatais e outras possibilidades, como a quitação de débitos parcelados ou inscritos em dívida ativa e compra de direitos do ente federado da antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo.
O texto muda o índice de correção nas condenações impostas à Fazenda Pública: hoje, é IPCA + 6%. Com a alteração, fica a Selic, reduzindo os custos para a União, quando a Selic está abaixo do IPCA. Gustavo Bachega afirma que, ao alterar o índice, a União terá que pagar menos do que deveria às pessoas que têm algo a receber.
“Um precatório, antes de transitar em julgado, percorreu o Judiciário em mais de dez anos. Temos precatórios de 30 anos que não foram julgados. Considere uma média de 15 a 20 anos. Depois de tudo isso, quando ocorre o trânsito em julgado, o valor é corrigido. Aí agora vem o governo e quer mudar tudo”, ressalta.
O trecho mais comentado da PEC é relacionado ao Teto de Gastos, que procura evitar uma falta de equilíbrio entre a inflação que corrige o limite de despesas (teto) e a inflação que corrige as despesas obrigatórias. Na regra atual, o teto é corrigido pelo IPCA apurado entre julho do ano anterior e junho do ano corrente. Já a inflação é apurada com base no período de janeiro a dezembro. A ideia é corrigir o teto pelo índice observado de janeiro a dezembro do exercício anterior ao da lei orçamentária.
Com a alteração, o governo espera abrir um espaço de R$ 39 bilhões no próximo ano. Somando isso com as mudanças em relação ao precatório, o espaço extra estimado seria de R$ 91,6 bilhões para novas despesas.
O texto do relator Hugo Motta (Republicanos-PB) prevê uma correção para este ano, pontuando que o eventual aumento dos limites fica restrito ao montante de até R$ 15 bilhões, valor a ser destinado exclusivamente ao atendimento de despesas de vacinação contra a Covid-19 ou relacionadas a ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico. Esse valor já deve ser usado para viabilizar o programa Auxílio Brasil neste ano, por meio de crédito extraordinário, por isso a pressa do governo para aprovar a matéria no Congresso.
A questão é vista como temerária por especialistas. Uma análise feita pelo diretor-executivo da IFI, Felipe Salto, e pelo diretor da IFI, Daniel Couri, do dia 7 de outubro, aponta que a alteração do teto deve “produzir aumento da percepção de risco pelos agentes econômicos, com efeitos não desprezíveis sobre os juros e o custo médio da dívida pública”.
“A credibilidade da política fiscal está diretamente associada ao zelo pelas regras fiscais. Alterá-las, como a IFI já alertou em trabalhos anteriores, requer discussão técnica e tempestividade. Promover mudanças que facilitam a observação do Teto de Gastos e aumentam o espaço para despesas novas, sobretudo em ano eleitoral, é um caminho custoso para o país, pelas razões expostas. Juros mais altos, vale dizer, afetarão as condições de crescimento econômicos nos próximos anos”, ressalta.
A proposta prevê que a Regra de Ouro, mecanismo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagamento de determinadas despesas, pode ser descumprida se as despesas estiverem previstas na Lei Orçamentária Anual. Nos atuais moldes, as despesas que ultrapassam o limite da Regra de Ouro são sujeitas à aprovação de créditos suplementares pelo Congresso Nacional. A questão é vista por especialistas como mais um ponto de insegurança fiscal da proposta.
Um dos pontos de muita resistência, especialmente da oposição, é a falta de previsão para o pagamento de dívidas a profissionais da educação relacionadas ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que foi substituído pelo Fundo de Manutenção da Educação Básica (Fundeb).
A PEC não cita explicitamente o fundo, mas esbarra nas quantias a serem recebidas por estados para o pagamento de docentes em processos já transitados, e que estão nos valores calculados na fatia dos precatórios a ser paga anualmente. Além disso, existe outro problema no texto: um trecho prevê que credores de precatórios — ou seja, entes que têm valores a receber da União — que não receberem no ano que deveriam, devido ao teto, podem optar em receber o valor até o fim do ano seguinte, em parcela única, desde que renunciem a 40% do valor do crédito.
Ou seja, se algum estado decidir receber dessa forma, professores daquele estado receberão menos do que a dívida atual.
O governo quer usar o recurso extra gerado pela mudança na regra do teto e o pagamento dos precatórios para financiar o Auxílio Brasil. Gustavo Bachega afirma que esse é o principal argumento do governo, mas trata-se de um subterfúgio. Segundo ele, o espaço gerado no orçamento é maior do que o necessário para bancar o programa. “O motivo do projeto é eleitoreiro. E é isso que decepciona o setor jurídico e financeiro”, afirma.