Luisa Mell detalha desafios no resgate de animais no Rio Grande do Sul e fala de fratura nas costelas
Luisa Mell passou uma semana intensa nos resgastes de animais atingidos pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul desde o início de maio. A ativista da causa animal conversou com a Quem sobre o cenário que encontrou, os salvamentos mais desafiadores e o problema de saúde que a fez retornar a São Paulo.
Com duas costelas quebradas, ela segue coordenando à distância a equipe do Institulo Luisa Mell. Em meio a críticas e ataques de ódio, ela promete voltar a Canoas (RS) assim que receber a liberação médica. Sua vontade é ajudar na reconstrução de abrigos e na busca por novos tutores aos animais que não encontraram seus lares.
Quantos dias você passou por lá e como era a estrutura?
Foi uma semana, mas parece que foi uma vida. Estou acostumada a ir para tragédias e consigo organizar as coisas. Lá, não consegui isso. Não tinha barco. Tive que trazer de São Paulo. Demorei para começar (os resgates) por causa disso. A gente não tinha hotel e, quando tinha, não era perto. Eram duas horas para chegar até o hotel. Então, a gente acabava o trabalho, ia comer e chegava no hotel uma da manhã para as cinco já estar de pé. Depois, consegui ficar na casa de uma seguidora.
O que encontrou presencialmente que as pessoas que estão distantes não têm a dimensão?
Pela TV, já era assustador, mas. pessoalmente. é mil vezes pior. Desesperador. Eu não tinha noção da dimensão daquilo. Fiquei muito impactada. Toda noite sonho com cachorro em alagamentos… Vi um monte de cachorros mortos. Foi terrível ver corpos de animais mortos boiando. Além disso, tinha o desespero das pessoas ali, implorando para ir buscar os cachorros. Sabia que eram muitos, mas não sabia que eram tantos. A gente faz, faz, faz e, quando acaba o dia, que não pode mais sair, você sabe que deixou um monte para trás. Você escuta latidos, mas tem esse horror de não poder sair à noite.
Está perigoso…
Tem que tomar cuidado com assaltos. Vi pessoas entrando nas casas para saquear, brigas de facções…
Como estão os abrigos?
A gente vê muitos resgates e é impossível não se emocionar, mas esses animais resgatados são levados para abrigos, que estão lotados. Da noite para o dia tem mil animais. As pessoas não têm como cuidar, os cachorros estão amarrados e desesperados. Cada um com a sua particularidade. Alguns, em choque. Já resgatei muitos bichos, mas nunca passei por uma situação tão difícil. Nunca tinha tomado uma mordidinha. Tomei uma no dedo – de um gato… Ele estava tão esfomeado, que, no desespero, me mordeu.
Não tem como não se emocionar, né?
As pessoas falam que choro muito. Como é que eu vou para um lugar desses e não choro? Não tem como. Todas as pessoas que foram comigo choraram muito. Você só vê o horror. É muita coisa junto. A única coisa boa disso tudo é ver as pessoas se ajudando, se arriscando e virando resgatistas de animais.
Qual foi o resgate mais desafiador?
Com certeza o de um cavalo. Já fiz muitos resgates de cavalos, mas nenhum em uma situação parecida. O cavalo que eu resgatei, logo quando eu cheguei, estava com água quase até o pescoço e muito assustado. Era uma égua, que estava em cima de uma plataforma, muito assustada e com leite nas tetas. Não achei o potrinho. Ela estava muito fraca porque estava ali há dias. Colocamos soro e depois começamos a pensar como tiraríamos ela dali. Contratei dois homens que lidam muito bem com cavalo e tinham experiência na água, coisa que eu não tinha. É muito difícil esse tipo de resgate. O cavalo nada, mas nessas águas turvas a gente não sabe o que tem embaixo. Pode ter carro, semáforo, caminhão, muros com lanças… Demoramos sete horas para fazer esse resgate. A gente tentou fazer um meio dela não afundar com galões, pedaços de madeira de um parquinho destruído e bolas. Isso ajuda, mas o problema é que o cavalo se assusta muito e, se ele não aceita, pode até morrer. É um animal muito sensível. Ela não aceitou e não ia. Nunca rezei tanto na minha vida.
E como ela foi resgatada?
Eles foram segurando o cavalo do lado do barco. A gente estava também com outro barco na frente desse para as pessoas que passassem perto parassem ou passassem devagar para o cavalo não se assustar. Quando chegou, foi uma felicidade – que é como se encontrar com Deus. A gente a alimentou e a aqueceu, já que estava com frio.
E você precisa de muita ajuda para fazer tudo isso…
Além da minha equipe, conheci dois gaúchos sensacionais que estão lá com o barco que eu deixei resgatando os animais.
É um cenário de destruição e de muitas mortes. Teve alguma cena em especial que te marcou?
Muitas, mas teve um menino que estava procurando o Pitbull dele. A gente levou esse menino até a casa dele. Ele ia chamando, mas o cachorro respondia. Tinha um corpo boiando perto, mas ele não aceitava que era do cachorro dele. Ele ficou muito abalado e começou a quebrar todas as telhas, chamando pelo cachorro. Tinha um cheiro de carniça, mas ele tinha muito esperança, não queria aceitar.
Desses animais, vocês pretendem levar alguns para o Instituto?
Confesso que a minha vontade era ter trazido centenas de animais, porém, foram dias de muito aprendizado. Você ver as pessoas desesperadas, que perderam tudo, procurando os seus filhos peludos… Estou dando um tempo para as pessoas reencontrarem seus animais. Tem muita gente julgando, “eu jamais deixaria o meu animal para trás”. Eu também não, mas nunca vivi nada parecido. Primeiro que algumas pessoas não estavam em casa e foi muito rápido. A defesa civil, pelo que me falaram, não deixava levar os animais porque tinham muitas pessoas. O que eu aprendi nestes dias é “não julguem essas pessoas”. Tudo o que elas não precisam é o julgamento de quem nunca passou por isso. Toda vez que eu voltava com o meu barco, as pessoas avançavam, tentando reconhecer seus cachorros. Vi o amor dessas pessoas pelos animais. A gente tem que abraçar as pessoas.
Só quando as coisas se normalizarem você vai conseguir ver quais animais estão mesmo abandonados, né?
Meu objetivo é pegar muitos animais e fazer eventos de adoção para encontrar novos lares para esses animais que sofreram tanto e, após tanto trauma, podem apresentar alguns problemas. Ah, e preciso esclarecer que voltei com o Instituto Luisa Mell. Estava organizando para voltar direito, mas aconteceu tudo isso e fui com recursos próprios. Logo fui vendo a dimensão daquilo e que as pessoas esperam que eu resolva o problema futuro que é a reconstrução e construção de abrigos. Temos que ajudar. Muitos animais eram de abrigos e muitos ficarão sem seus donos. Então quero levar para o meu Instituto e organizar eventos de adoção. Essa será a minha grande contribuição.
Você quebrou duas costelas. Como foi isso?
Não sei exatamente como foi. Meu corpo inteiro estava muito roxo. Parecia que eu estava levando uma surra. Estava com muita dor. Não sei como aguentei. Fui muito guerreira. Se fosse em outro cenário, talvez não aguentasse, mas, diante daquele horror, não podia ir embora. Caí algumas vezes, porque as telhas estão começando a apodrecer, mas desconfio que tenha sido logo no resgate do cavalo, no primeiro dia. Vi em alguns vídeos que eu já estava reclamando de dor. A dor não parava, tomei remédios e coloquei emplastro, mas não resolvia.
E como descobriu que havia quebrado as costelas?
O auge da dor foi na madrugada da sexta. Acordei a casa inteira urrando de dor. A gente voltou para Florianópolis de madrugada. Eu não consegui nem fazer a minha mala de tanta dor. Foi a veterinária que fez. Quando voltei, fui direto para o hospital e veio a triste notícia. Eu esperava que eles me dessem um remédio e que passasse para eu poder voltar.
Se você não tivesse ido ao hospital, poderia ter ocorrido algo pior?
Não sabia que era tão perigoso quebrar uma costela, mas o médico me explicou – porque eu queria voltar de qualquer jeito. Ele disse que a costela poderia ter perfurado um órgão. Daí fiquei assustada. Tenho filho para criar e poderia ter morrido.
Como é a recuperação? Teve que fazer cirurgia?
Não tem que fazer cirurgia. Tem que ficar de repouso, algo que é difícil para caramba. Sou da ação, mas estou aqui organizando dos bastidores. Por mais triste que seja estar lá, sei que estou resgatando cada um ali e enchendo a minha alma de luz. De longe, fico vendo vídeos e chorando.
Como você tem lidado com as pessoas que têm te atacado neste período e desconfiado até dessa situação da fratura nas costelas?
Fiquei resgatando com duas costelas quebradas e as pessoas criticando sentadas das suas cadeiras. Fico desiludida. O ser humano parece que não vai melhor nunca. Já estou de cama, debilitada e frágil e fico lendo “bem-feito” e “por que foi?”. Eu sempre resgatei animais. Comecei quando as pessoas achavam que resgate de animais era algo ridículo, em 2002. Fico muito emocionada ao ver o que se tornou a causa animal e como a percepção das pessoas mudou completamente. Estive em todos os desastres depois que comecei a atuar com isso. Sempre resgatei animais e dediquei a minha vida à causa. Daí aparece um monte de gente e fala “eu é que estou fazendo”. Você entende que as pessoas só querem criticar. Para cada bicho que salvei fiz a diferença. Isso que importa.
No Pantanal, meu desespero era também saber que as consequências iam vir. Estou falando faz tempo que tragédias como essa iriam acontecer. Cada vez será pior. Vou continuar gritando enquanto tiver forças. Tenho um filho de nove anos e é desesperador. Temos que conscientizar as pessoas a votar em políticos que tenham comprometimento com a causa ambiental, além de planos para planejar a cidade para que não aconteça mais algo devastador como o que ocorre hoje no Rio Grande do Sul.
Vocês do Instituto seguem o trabalho lá?
Sim. Não tem como parar. Fiquei uma semana, senti a dor insuportável e pensei em voltar depois, mas não teve como. Mandei mais gente e estou contatando outras pessoas. Está desesperador.
Como as pessoas podem ajudar?
Agora temos o instituto novo, o Luisa Mell oficial. Já estamos realizando esse trabalho super importante com uma equipe maravilhosa que Deus me mandou, junto desses meninos do sul que caíram do céu. Também tenho a campanha adote um protetor para ajudar protetores que perderam tudo. A gente tem que ajudar as Ongs e protetores de lá. Quando passar a primeira crise, terão muitos desafios. A tragédia continua no local. Por isso precisamos fortalecer as Ongs e protetores locais. Assim que eu me recuperar, vou para lá de novo trabalhar nessa reconstrução e nestes eventos de adoção.