Mulheres no comando nas Forças Armadas: as histórias das duas únicas hoje no topo da carreira – e por que há só duas
Quando a Marinha abriu uma turma de mulheres e se tornou a primeira das forças militares brasileiras a admitir a presença feminina, em 1981, a contra-almirante Dalva Mendes estava lá. Ela e suas colegas passaram a fazer parte de um corpo auxiliar ao principal, composto por homens. Podiam almejar a apenas alguns cargos.
Os anos foram passando, a instituição foi se abrindo para mulheres, ela foi evoluindo na carreira — foi a única de sua turma que não se aposentou quando teve a oportunidade. Em 2012, se tornou a primeira mulher a ascender à categoria de oficial-general, a mais alta na hierarquia das instituições militares, nomeada pela então presidente Dilma Rousseff (PT). Virou contra-almirante, o terceiro posto dessa categoria.
Seis anos depois, Luciana Mascarenhas chegou à mesma posição. Hoje, são as únicas duas mulheres entre os mais de 400 oficiais-generais das Forças Armadas.
Se a presença feminina vem crescendo nas Forças Armadas, por que há tão poucas mulheres nos altos níveis, como elas, por que não há nenhuma de patente mais alta que as duas contra-almirantes e por que até hoje nenhuma mulher chegou a um cargo de comando de uma das armas?
Na opinião das duas únicas oficiais-generais, a resposta passa por questões ligadas ao papel das mulheres na sociedade. “Não é a Marinha, são as pessoas”, diz a contra-almirante Dalva. “As mulheres precisam ter vontade”, diz a contra-almirante Luciana. Elas dizem que chegaram lá por uma mistura de fatores: gosto pela profissão, uma família que as apoiava e um pouco de acaso.
No entanto, há também obstáculos de ordem prática, ainda que a integração de mulheres às Forças Armadas tenha avançado nos último anos. A inserção feminina é mais recente e o acesso a carreiras que levam a postos altos, ligados à atividade-fim das Forças — o combate —, mais ainda. Como a carreira militar é longa, a ascensão leva décadas.
A Marinha, por exemplo, só permitiu que uma mulher competisse em carreiras que levam ao comando da força em 2018. O Exército e a Aeronáutica até hoje impõem restrições às especializações que elas podem escolher, o que limita suas possibilidades de caminhos para chegar ao topo. Há também reserva de vagas em número maior para homens em alguns cursos preparatórios.
Na opinião de outra mulher que é exceção no meio militar, Maria Elizabeth Rocha, a única ministra do Superior Tribunal Militar (STM), “o cultural e social se refletem na instituição”. “Cansei de julgar situações de desobediência de homens a militares superiores do sexo feminino”, diz a magistrada.
Para a ministra, “isso deixa mulheres numa posição inferior no país porque não podem integrar plenamente as Forças Armadas e defender a pátria”.
Como elas chegaram lá?
A contra-almirante Dalva sempre tivera curiosidade sobre mulheres no serviço militar. Não tem militares na família, mas achava que se encaixaria bem porque vem de uma família “tradicional e rígida”. “Não achei que teria dificuldade de me adaptar a regras porque já as obedecia”, diz ela. Formada em medicina, estava fazendo sua residência quando ouviu falar que a Marinha havia aberto vagas para mulheres.
“Eles abriram essas vagas por necessidade de serviço. Era um momento em que precisavam de força de trabalho de pessoas formadas”, diz ela. O Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, estava expandindo, e Dalva sabia que as instalações seriam excelentes.
Médica anestesiologista, viveu quase toda a carreira lá, passando pelas funções técnicas e administrativas.
Quando chegou a hora de se aposentar, quis continuar a trabalhar. Da sua turma de 1981, é a única que segue trabalhando. “Acabei ficando viúva, meus filhos estavam criados, falei ‘vou tentar’ (avançar para o generalato). Minha turma dizia ‘fica, sim, quem sabe!'”, diz ela.
Hoje em dia, diz ela, mulheres militares a abordam e dizem “agora nós acreditamos”. “Isso ficou marcado profundamente na minha alma”, lembra a contra-almirante, que hoje trabalha na Diretoria de Saúde da Marinha.
A contra-almirante Luciana, do Corpo de Engenheiros da Marinha, também não quis parar de trabalhar quando pôde. Gostava do que fazia. Entrou para a ala feminina da Marinha em 1989, quando o Corpo de Engenheiros ainda não aceitava mulheres.
Com a reestruturação de corpos de 1997, foi transferida para a engenharia. Lá, pôde almejar a um posto de generalato pela primeira vez. “Tive vontade, mas sabia que o caminho seria longo”, diz ela.
Fez mestrado no exterior em engenharia eletrônica, aumentando sua qualificação, e os cursos que são exigidos para avançar na carreira. A cada passo que dava, a aspiração ao generalato aumentava.
Sentiu que poderia mesmo se tornar virar oficial-general quando foi escolhida para dirigir o Centro de Tecnologia e Informação da Marinha, onde ficou por três anos. “Quando chegou minha oportunidade, fui finalmente escolhida”.
Assim como Dalva, ela diz que sua situação familiar a ajudou. As duas receberam apoio dos maridos e filhos para seguir na carreira. No caso de Luciana, seu marido, que também é militar, se aposentou e ela seguiu na carreira. “As pessoas brincam que ele é mandado”, diz ela, rindo.
Quando ela quis fazer um mestrado no exterior, ele pediu licença de sua função para acompanhá-la. “As pessoas reagiram com surpresa. Diziam ‘nossa, você vai acompanhar ela?’ e ele dizia que sim, que era uma excelente oportunidade para mim e para os nossos filhos”, conta.
“É muito normal as mulheres pararem suas carreiras para acompanhar seus maridos, mas quando um homem faz isso a reação é totalmente diferente.”
A contra-almirante tem dois filhos homens, que, segundo ela, se orgulham do trabalho da mãe.
O marido de Dalva morreu, mas, segundo ela, os dois dividiam as tarefas de casa e se apoiavam. “Outro dia, depois de uma palestra, veio um casalzinho me perguntar o que é mais importante. Eu disse: ter o companheiro certo.”
‘A mulher tem que querer’
Por que não há mais mulheres que, como elas, chegaram ao generalato? Para as duas, os motivos são sociais e pessoais.
“Continuar a carreira é bonito, mas não é fácil, requer sacrifício. Você não tem horário, não tem fim de semana, tem que estar sempre disponível, estar sempre responsável por muita coisa. Na nossa cultura, na hora de tomar conta de um idoso, se espera que a mulher faça isso. Muitas vezes ela resolve deixar de fazer outras coisas. É algo muito pessoal”, opina Dalva.
Luciana diz que não teve nem incentivos nem empecilhos pelo fato de ser mulher. “Como engenheira, tive incentivos de cursos, do mestrado”, diz ela. Luciana acha que “as mulheres precisam ter vontade”.
“Tive uma colega que fez uma carreira igual à minha. Tinha o mesmo tempo de serviço. Também dirigiu um centro. Quando acabou a direção, pediu reserva. Disse que o pai precisava da sua atenção. Ela tinha chance, fez tudo que eu fiz. Mas não quis”, diz Luciana.
A contra-almirante conta que, na época de sua ascensão, a carreira feminina avançava mais lentamente que a dos homens, e isso não tinha necessariamente a ver com escolhas pessoais. “Até a reestruturação de corpos e quadros, apenas engenheiras e médicas iam até o posto de oficial-general. Tinha menos opções de cargos para os quais podíamos avançar, então o tempo que passávamos em cada posto era maior, as promoções demoravam mais”, diz ela. “Havia uma distorção, mas ela foi corrigida.”
Dalva diz que sente a baixa autoestima das mulheres militares. “A gente acha que não é capaz. Aquelas que têm autoestima um pouco melhor alcançam. Uma parte depende de nós, depende de nos prepararmos e acreditarmos em nós. Sempre digo que o ‘não’ já é certo”.
Ela acha que a Marinha, como instituição, hoje está no caminho certo. “O que pode acontecer é que o homem sente que está perdendo território e fica um pouco ressabiado. Mas não é a Marinha, são as pessoas, porque a sociedade está mudando, as mulheres estão entrando em locais que são só de homem”, diz ela.
Apesar de as duas se mostrarem conscientes sobre desigualdade de gênero na sociedade e se dizerem favoráveis a igualdade de oportunidades para homens e mulheres, nenhuma das duas se identifica como feminista.
“Sou humanista”, diz Dalva. “As pessoas têm que ter possibilidade de fazer suas escolhas. Isso é o básico.”
“Eu não me sinto feminista, mas meus filhos dizem que eu sou”, diz Luciana, rindo. “Defendo direito de escolha, ficar em casa ou não. Acho importante não tolher as mulheres nas suas escolhas. Por esse viés, sou, mas não faço militância.”
Obstáculos concretos
Um histórico de desigualdade também explica por que há poucas mulheres em cargos altos.
Dentro da categoria mais alta das Forças Armadas, a de oficial-general, cada patente recebe um número de estrelas. Para se tornar comandante de uma das Forças, é preciso ter quatro estrelas. As carreiras permitidas para mulheres até pouco tempo atrás não atingiam esse nível, com exceção da Força Aérea.
O melhor caminho para a ascensão nas Forças Armadas é por meio das escolas de formação de oficiais — a Escola Naval, da Marinha, a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), do Exército, e a Academia da Força Aérea (AFA), da Aeronáutica. Para chegar à patente de quatro estrelas e poder comandar uma força, é preciso passar por elas.
Mulheres passaram a poder entrar nas academias do Exército e da Marinha por uma lei, sancionada em 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff, que permitiu que militares do sexo feminino atuem em posições de combate. A Força Aérea já autorizava isso.
A Marinha admitiu mulheres em seus quadros em 1980, estendeu o acesso aos Corpos de Saúde e de Engenheiros Navais em 1998 e à Escola Naval, no ano de 2014. Em 2018, após a própria Marinha pedir uma mudança na legislação, elas passaram a poder escolher habilitações que levam a quatro estrelas. Esse caminho é longo — leva em torno de 29 anos para que seja alcançado o primeiro posto de almirante.
O Exército permitiu que mulheres entrassem nos seus quadros em 1992 e, na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em 2017. No entanto, mulheres não podem escolher qualquer especialização (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Comunicações, Intendência e Material Bélico), como podem os homens. As cadetes do sexo feminino têm acesso a apenas dois cursos: Intendência e Material Bélico. Sendo assim, há menos opções de caminhos para um cargo de quatro estrelas.
Integrantes do Serviço de Saúde, do Quadro de Engenheiro Militar e da Linha de Ensino Bélico concorrerão ao ingresso ao quadro de oficiais-generais a partir de 2022, 2026 e 2050, respectivamente.
Tanto Exército quanto Marinha têm reserva de vagas em número maior para homens na Escola Naval e na Curso de Formação e Graduação de Oficiais de Carreira da Linha de Ensino Militar Bélico (CFO/LEMB), que dá acesso à Aman.
Sobre isso, a Marinha diz que oferece 18 portas de entrada e apenas o concurso para Escola Naval possui vagas específicas para homens e vagas específicas para mulheres. O Exército diz que “a intenção foi começar com um pequeno grupo e realizar o acompanhamento do processo, evitando maiores transtornos por eventuais retificações”.
“Tal percepção vem do fato de que, ao analisar a participação do sexo feminino em outros países, identificou-se que aqueles que admitiram mulheres nas áreas combatentes sem um controle inicial, tiveram diversos problemas e, atualmente, estão reformulando o processo”, diz a instituição, em nota.
Afirma também que “há alguns aspectos que deverão ser considerados quanto às limitações no ingresso do sexo feminino, tais como: os que se referem à diferença de força e resistência física (…), a incompatibilidade entre maternidade, cuidado com os filhos pequenos e a vida em ambientes operacionais variados durante longos períodos”.
A Aeronáutica admitiu mulheres em 1982, foi a primeira força a formar oficiais mulheres, a partir de 1996, e é a força com a maior proporção de mulheres em seus quadros. Em 2003, abriu para elas o Curso de Formação de Oficiais Aviadores, permitindo que pudessem então seguir o caminho de aviadoras, que abre as portas para uma carreira que leva a quatro estrelas.
As oficiais-aviadoras formadas pela Academia da Força Aérea em 2006 poderão alcançar, futuramente, o mais alto posto da carreira, o de Tenente-Brigadeiro do Ar, mas isso ainda levará décadas. Mulheres ainda não podem seguir o caminho da Infantaria nas escolas de formação.
Soluções
Para Maria Elizabeth Rocha, a única mulher ministra do Superior Tribunal Militar (STM), de fato as diferenças sociais acabam se refletindo dentro das Forças Armadas — mulheres escolhem não avançar na carreira para desempenhar papéis de cuidadoras. Mas, para ela, mais deveria ser feito para compensar esse fenômeno.
Ela cita, por exemplo, a flexibilidade de horários oferecida pelo Exército israelense e a importância de cursos que permitam às mulheres avançar na carreira ao voltar de uma licença-maternidade.
“Nos EUA há categorias que levam em conta idade, força, peso e finalidade da presença da mulher para aprimorar integração. Os exercícios são adaptados à capacidade física delas. Na Holanda estão adaptando armamento à anatomia feminina. Elas poderão se tornar melhores soldados. Privilegia a diferença e ao mesmo tempo a inclusão”, exemplifica.
“A formação tem que ser igual, de modo que elas possam se preparar para neutralizar desvantagens, como a gravidez. Quando a mulher engravida, é afastada por um ano do mercado de trabalho. Não podemos condenar as mulheres à infertilidade”, diz.
A ministra acabou optando, ela própria, por não ter filhos. “Não ter tido filhos não limitou meu acesso a viajar, fazer curso no exterior, progredir academicamente”, diz ela.
“É preciso haver reciclagem, formação periódica, senão nunca haverá soluções compatíveis com suas situações. Hoje elas estão em situação inferior.”