Grupo colombiano descumpre recomendação da Funai e consegue assinatura de indígenas em projeto de carbono
Contrariando orientações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o grupo colombiano Community REDD+ assinou contratos em novembro de 2023 para comercializar créditos de carbono gerados nas florestas de pelo menos três territórios indígenas do Alto Solimões, no Amazonas. Esses créditos são usados por empresas que precisam compensar suas emissões de gases do efeito estufa.
A InfoAmazonia acompanha o caso desde a fase de pré-contrato, em outubro de 2023, quando as empresas estavam em processo de convencimento dos indígenas. A reportagem esteve na região e descobriu que o projeto de carbono havia sido apresentado como forma de viabilizar a criação de uma universidade exclusiva para os povos indígenas. Ele foi desenvolvido por um grupo de empresas colombianas, o Community REDD+, que obteve apoio das principais lideranças, mas nunca conseguiu o aval da Funai, que negou ingresso dos empresários para apresentar o projeto nos territórios e orientou que os indígenas não assinassem contratos sem o aval do órgão indigenista, antes da regulamentação do mercado de carbono no Brasil, sob risco de anulação desses acordos.
Mesmo assim, um mês depois, os executivos das empresas ingressaram nos territórios, realizaram reuniões e assinaram contratos para iniciar o projeto de carbono nas terras indígenas Estrela da Paz, Riozinho e Acapuri de Cima, segundo apuração com fontes locais e em documentos oficiais analisados pela da InfoAmazonia.
“A Funai, por meio de seu coordenador técnico local em Jutaí, município onde estão localizados os territórios indígenas, esteve presente no desenvolvimento de todas as oficinas de formulação de projetos”, informou o grupo colombiano em nota enviada à reportagem em janeiro de 2024, após assinatura dos contratos.
No entanto, a Funai nega que tenha dado aval para a assinatura e informou que a eventual participação de seus servidores locais nas reuniões ocorridas nas terras indígenas do Alto Solimões não avaliza os projetos e que a presença de técnicos ocorreu “como ouvinte” e “em consideração à autonomia exercida pelos povos indígenas”. O órgão diz que, nesses encontros, “em nenhum momento ingressou no mérito” dos contratos.
Reação à reportagem
No final de outubro de 2023, um mês antes da assinatura do contrato com os indígenas e a Community REDD+, a InfoAmazonia publicou a reportagem mostrando descumprimento das orientações da Funai e da consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura o direito das comunidades decidirem livremente sobre qualquer projeto com interferência em suas terras.
Na época, a reportagem teve acesso a seis pré-contratos assinados para desenvolver projetos de carbono nas terras indígenas Riozinho, Rio Biá, Estrela da Paz, Macarrão, Espírito Santo e Acapuri de Cima. Três deles evoluíram para os contratos assinados em novembro de 2023.
O Community REDD+ é formado por uma aliança entre empresas colombianas, entre elas a Carbo Sostenible, Terra Commodities e Yauto, que conduzem projetos de carbono para compensação ambiental em comunidades tradicionais na Colômbia, e mais recentemente no Peru e no Brasil.
Antes da publicação da primeira reportagem da InfoAmazonia, Juan Eduardo Hernández, gerente da Concepto Carbono e coordenador da CommunityRedd+, recusou-se a responder aos questionamentos: “o foco das perguntas não conhece o contexto de um projeto de REDD+”, disse. Ele também contestou as informações da Funai apuradas pela reportagem e disse que “o escritório da Funai que consultaram não tem jurisdição na área de trabalho”, sugerindo que a Funai em Brasília não teria autoridade na região de Jutaí, o que não é verdade, já que a Funai de Brasília é o orgão central responsavel pelas terras indígenas no Brasil.
Já Federico Ortiz, acionista e diretor da Terra Commodities, disse que os projetos são liderados pelos indígenas, e que estavam em fase de apresentação aguardando definições futuras. Yauto e Carbo Sostenible não responderam aos contatos.
Dois dias depois da publicação, as mesmas quatro empresas emitiram uma nota contestando a reportagem. Uma carta com teor semelhante foi publicada no El Espectador, veículo colombiano parceiro de publicação da reportagem, uma semana depois, escrito por Juan Andrés López da Carbo Sostenible. Na nota coletiva, os empresários chegam a afirmar que os trabalhos na região do Alto Solimões estariam suspensos aguardando autorização da Funai, o que não se confirmou, pois reuniões continuaram sendo realizadas até a assinatura dos contratos no início de novembro, segundo consta em registros obtidos pela InfoAmazonia e em um informe enviado à Funai após a assinatura dos contratos.
“Para esclarecer as informações apresentadas na reportagem da InfoAmazonia, antes de iniciar os trabalhos em Jutaí, nossa delegação da Aliança visitou a Funai em Tabatinga com o intuito de apresentar nossa forma de trabalhar e estabelecer as primeiras abordagens. Como não tínhamos consentimento institucional naquele momento, não demos continuidade ao processo e paramos os trabalhos naquela região”, diz trecho da nota que também foi publicada no site da CommunityRedd+, mas foi retirada do ar posteriormente. (O texto ainda pode ser encontrado através do site web archive).
Mas, no início de novembro, após a InfoAmazonia ser informada sobre a continuidade das reuniões para a assinatura dos contratos nas terras indígenas no Alto Solimões, os empresários mudaram a versão sobre a participação da Funai. Em resposta direta à reportagem, o grupo CommunityRedd+ afirmou que o projeto foi desenvolvido com a participação do órgão indigenista brasileiro: “há atas, listas de presença e vídeos que mostram a presença da Funai no processo”, afirmaram.
No entanto, segundo a Funai, a participação de funcionários nas reuniões teria como objetivo “acompanhar as negociações em curso para que não haja danos aos direitos indígenas” e que “a União necessita conceder autorização para que se possa formalizar projetos e contratos desta natureza”, complementando que na ausência de regulamentação sobre o assunto, não haveria como a União participar ou autorizar tais negociações. A Funai ainda informou que os empresários colombianos não tinham autorização para ingressar nos territórios.
Nas respostas enviadas à reportagem, o CommunityREDD+ sustentou que o projeto pertence às comunidades e que foram os próprios indígenas que procuraram as empresas. (Leia aqui a íntegra da manifestação do Community REDD+, em espanhol)
“Não se trata de projetos a serem executados por terceiros em seu território, como é o caso de um projeto de mineração ou petróleo, mas de um projeto desenvolvido e executado pelas próprias comunidades em seu território e, portanto, desenvolvido em um ambiente totalmente voluntário e autodeterminado”, responderam (em tradução livre do espanhol para o português).
Apesar das afirmações do grupo de que o projeto é dos indígenas, a exclusividade para comercialização dos créditos é das empresas em todos os acordos assinados até o momento, o que impede, por exemplo, que os indígenas busquem negociações com outras empresas.
Os contratos assinados entre 3 e 6 de novembro prevêem que caberá às empresas o desenvolvimento e gestão dos projetos, e aos indígenas garantirem a proteção da floresta no território para assegurar a geração dos créditos.
É oficial: Funai não autorizou mercado de carbono em TIs
Em uma Informação Técnica encaminhada às coordenadorias estaduais em maio de 2023, a Funai deixa claro as orientações para que não sejam assinados contratos por falta de entendimento técnico e jurídico sobre o tema:
“O posicionamento institucional que tem sido alinhado entre Funai e MPI [Ministério dos Povos Indígenas] e que também tem sido externalizado às empresas, OSCs [Organizações da Sociedade Civil], lideranças indígenas e demais atores interessados na realização de projetos de crédito de carbono em terras indígenas é o de orientar para que as comunidades indígenas não assinem nenhum tipo de contrato no momento. A precaução com a assinatura dos contratos justifica-se pelas dúvidas que se tem ainda sobre a participação das terras indígenas nesse tipo de mercado, e pelo fato do assunto ainda estar sendo debatido entre a Funai, o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima”, diz trecho da nota.
A mesma informação foi reforçada pela Funai em 27 de novembro do ano passado à reportagem da InfoAmazonia, já após assinatura dos contratos em Jutaí. Na ocasião, o órgão indigenista voltou a informar que os empresários não tinham autorização para realizar assembleias dentro da terra indígena.
Em outubro de 2023, antes da publicação da primeira reportagem, a Funai já havia informado que os acordos assinados sem autorização da União poderiam ser anulados: “Todos os contratos firmados correm risco de serem anulados, tendo em vista questionamentos de natureza técnica e legal acerca da viabilidade, dos procedimentos necessários e do cumprimento das salvaguardas socioambientais, dentre as quais destaca-se o direito à consulta livre, prévia e informada”, disse o órgão federal indigenista.
Segundo a Funai, “a transação de créditos de carbono em terras indígenas possui peculiaridades”: são terras públicas, de uso coletivo, e que a “União necessita conceder autorização para que projetos e contratos dessa natureza possam ser formalizados”.
Apoio local com opiniões divididas
Os empresários colombianos têm apoio dos caciques locais, que afirmaram ser favoráveis ao projeto. No entanto, a proposta divide opiniões na comunidade, que, em parte, aponta falta de transparência e de participação nos processos de consulta.
Ainda em outubro do ano passado, um indígena da Terra Indígena Estrela da Paz escreveu para a reportagem apontando que os direitos indígenas continuavam sendo “violados” e que novas reuniões para tomada de decisões ocorreram sem “consulta aos povos originários”.
Um servidor da Funai, que pediu para não ser identificado com medo de represálias, relatou que as empresas prometeram altos ganhos financeiros aos caciques para convencê-los a aceitarem os acordos: “Falaram que depois que o projeto sair não vão mais precisar da Funai”, afirmou o servidor, que também nega qualquer consentimento do órgão para o projeto. “Estamos aguardando orientações de Brasília”, disse.
Durante a apuração da reportagem, ao menos cinco caciques acreditavam que o projeto de carbono estava diretamente relacionado com a criação de uma universidade indígena.
Os próprios diretores do Conselho dos Povos Indígenas do rio Jutaí (Copiju), que é indicado pelos empresários como entidade mediadora, disseram não ter pleno conhecimento das negociações com os indígenas. A direção do Copiju foi informada pela reportagem sobre a existência de um pré-contrato firmado para exploração de créditos de carbono na Terra Indígena Rio Biá, o que contrariava uma promessa dos empresários de que o Conselho seria parte neste acordo e participaria da repartição dos lucros neste projeto.
Após tomarem conhecimento desse fato, os diretores da Copiju confirmaram que os pré-contratos de fato foram assinados informando um novo acordo com os empresários para incluir a Copiju nos projetos de carbono.
Em outubro de 2023, a procuradora federal Nathália Mariel falou à InfoAmazonia sobre as preocupações relacionadas a projetos de geração de carbono em terras indígenas. Além da falta de regulamentação específica, Mariel destacou a falta de consulta adequada às populações indígenas na assinatura dos contratos, o que poderia constituir uma violação dos direitos indígenas.
“Estamos muito preocupados, principalmente com a abordagem às comunidades, a falta de informações claras sobre os projetos, e a falta de organização desse debate com as comunidades, que precisam ser informadas por meio de consulta prévia, por meio de um protocolo de consulta para aquela comunidade. O que temos visto é que essas etapas estão sendo atropeladas nessas abordagens”, disse a procuradora, afirmando que a falta de uma diretriz clara sobre esses projetos “não impede que violações sejam investigadas.”
Mariel fez parte de um grupo de 16 procuradores que assinaram uma Nota Técnica do Ministério Público Federal (MPF) reforçando a necessidade de autorização estatal e apoio técnico para projetos de carbono em terras indígenas. A nota alerta que “a consulta prévia deve ocorrer na fase de planejamento e antes de qualquer ato decisório”. Ela pede que sejam tomadas medidas contra projetos que ignorem essas diretrizes.
Segundo entendimento do MPF, a consulta indígena deve ser aplicada por meio de um protocolo que estabeleça de forma clara os detalhes dos projetos. “Esse diálogo deve ser amplamente participativo, ter transparência, ser livre de pressões, flexível para atender a diversidade dos povos e comunidades indígenas e ter efeito vinculante, no sentido de levar o Estado a incorporar o que se dialoga na decisão a ser tomada”, segundo divulgou o órgão em nota pública.
Em decisões recentes, relacionadas a consultas indígenas de outros povos, a própria Justiça do Amazonas proibiu a participação de empresas interessadas nas reuniões para tomadas de decisões, sob o risco desses encontros serem nulos por influência dos interessados diretos, nesse caso, as próprias empresas.
Questionado sobre os critérios adotados para a consulta indígena, por email, o grupo Community REDD+ respondeu que “o projeto nasce e é concebido pela vontade e autodeterminação das comunidades”.
A consulta indígena, que segundo as empresas decidiu pela implantação do projeto, só foi informada à Funai em Brasília em 13 de dezembro de 2023, já após a assinatura do contrato.
Fragilidades do projeto
Em uma série de manifestações, notas técnicas e respostas enviadas diretamente à reportagem, a Funai elenca fragilidades nos projetos de carbono em terras indígenas, como a não realização de consulta adequada, e alerta para possíveis anulações de acordos assinados sem consentimento da União.
Pelo menos desde agosto de 2022, a Coordenação Regional do Alto Solimões tem sido informada pela Funai de Brasília sobre essas fragilidades. Mesmo assim, 18 encontros, como oficinas, reuniões e assembleias foram realizadas em 2022 e 2023 culminando na assinatura dos três “contratos de parceria”. O acordo prevê a divisão de 70% dos lucros para os indígenas e 30% para os empresários.
A minuta do contrato não estipula um prazo máximo para desenvolvimento do projeto, fixando que o acordo é válido até que todos os créditos de carbono gerados sejam vendidos.
Com a verba a que tem direito, os indígenas terão que custear a proteção do território e pretendem investir o restante em melhorias nas aldeias, segundo mostram os registros das oficinas anexados ao contrato.
O acordo também prevê a contratação de uma “Sociedade Implementadora”, que ficará com 5% da parte dos lucros. A contratada realizará a prestação de serviços para emissão do Certificado de Emissões Reduzidas (CREs), que são os créditos de carbono em si.
Uma das cláusulas do contrato já prevê multa aos indígenas em caso de rompimento do acordo “antes da emissão de quaisquer CREs.”.
O documento também prevê que todo o dinheiro da venda dos créditos de carbono será gerenciado pelas empresas colombianas e distribuído aos indígenas, após pagamentos e descontos de impostos. “A Comunidade terá acesso ao extrato e às movimentações da Conta do Projeto anualmente, quando da prestação de contas; e mediante solicitação”, diz trecho da minuta dos contratos aos quais a InfoAmazonia teve acesso.
Agora, com os acordos assinados, os empresários prometem enviar o projeto para certificação internacional e iniciar a venda dos créditos de carbono no mercado privado. Esses créditos são usados por empresas que precisam compensar suas emissões de gases de efeito estufa.
Funai aguarda manifestação da área técnica
O órgão indigenista brasileiro tem insistido na necessidade de acompanhar as iniciativas desse mercado em terras indígenas desde o início do governo Lula (PT), principalmente para resguardar os direitos indígenas, em uma clara mudança em relação ao seu antecessor, Bolsonaro (PL). No entanto, a falta de uma regulamentação clara impede a participação efetiva do governo federal nas negociações e o aval da União, o que pode tornar esses contratos frágeis juridicamente, segundo a Funai.
Além disso, há dúvidas de caráter técnico sobre o papel desses projetos isolados nos compromissos climáticos assumidos pelo Brasil, o que poderia resultar na exclusão dessas terras indígenas de programas governamentais de crédito de carbono ou até mesmo gerar dupla emissão de créditos, segundo mostra manifestação da área técnica da Funai de maio de 2023, que lista 33 projetos de carbono, identificados entre 2022 e 2023, em 34 terras indígenas.
“Neste ponto, cabe refletir de que modo a realização de projetos isolados do tipo REDD+ [Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação], em terras indígenas, no âmbito do mercado voluntário de carbono, podem afetar a possibilidade de inserção dessas terras em programas jurisdicionais. Ou seja, poderia haver um problema de exclusão ou de dupla contagem no caso de sobreposição entre projetos isolados com programas jurisdicionais, no âmbito do mercado voluntário de carbono?”, indaga trecho da Nota Técnica.
Em abril de 2023, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, afirmou que o órgão apoia iniciativas sustentáveis voltadas para a autonomia das comunidades indígenas, mas criticou o papel exercido por “atravessadores”, como classificou as empresas que desenvolvem os projetos de carbono e ficam com parte dos lucros. “Tudo o que for produzido tem que ficar para as famílias das comunidades”, disse a presidenta da Funai.
Procurada a se manifestar sobre quais medidas serão adotadas após o descumprimento das orientações e a efetiva assinatura de contratos nas terras indígenas em Jutaí, a assessoria da Funai afirmou que o caso está sob análise da área técnica.