Isis Broken: ‘Sei que estou abrindo portas para pessoas trans e outros corpos marginalizados’
Isis Broken, 30 anos de idade, é apontada como uma das revelações do elenco de No Rancho Fundo, em que interpreta Corina Castello, dona de uma loja de roupas na cidade fictícia de Lapão da Beirada, onde a trama é ambientada. Mulher trans, sergipana e afro-índigena, a atriz e cantora se diz realizada com a oportunidade em uma novela.
“Corina é uma potência, principalmente pelo arco principal dela não ser o de uma mulher trans. Ela representa a essência do meu povo”, afirma Isis, sem esconder a satisfação com a naturalidade como a personagem está inserida na trama do autor Mário Teixeira.
Isis avalia que passou por situações de preconceito. “Ao longo da minha vida, enfrentei inúmeros desafios. Tudo o que conquistei foi resultado de muito suor, lágrimas, trabalho árduo e esforço incansável. É algo que sempre enfatizo: tudo se torna ainda mais árduo quando você não se identifica como cisgênero”, diz.
Mãe de Apolo, de 2 anos, a atriz opta por usar pronomes neutros ao se referir à criança. “O preconceito acontece de diversas formas, veladas ou escancaradas. Nunca me veem como uma mãe transprogenitora. Quando falo que é meu filhe, aí perguntam se foi inseminação artificial, perguntam se é adotado”, diz. Apolo, nascido em janeiro de 2022, é da relação de Isis Broken com o rapper Lourenzo Gabriel, um homem trans que engravidou dela durante a pandemia.
Embora já tenha cogitado desistir da carreira artística, a atriz e cantora afirma estar focada em se manter ativa e em busca pela representatividade no meio. “Almejo estabelecer uma presença duradoura nesses espaços, o que é crucial para a visibilidade e a valorização dos corpos trans.”
Quem: Como surgiu o convite para atuar em No Rancho Fundo?
Isis Broken: Eu havia recebido um convite da Globo para atuar. Decidi fazer um curso de atriz, oferecido por eles e acabei conquistando meu primeiro papel em Histórias Impossíveis, quando fiz Mateusa. Logo em seguida, veio o teste para Corina Castello, de No Rancho Fundo. É muito significativo o tamanho disso para mim, mas não era algo que eu planejava ou que eu imaginava.
Quais os desafios que a personagem traz?
Acredito que a Corina caiu como uma luva. Temos muitas afinidades, como o amor pela moda e nossas raízes nordestinas. Sempre me esforço para dar o meu melhor. O desafio é permanecer em constante evolução, criando uma personagem que contribua para contar essa bela história que a novela apresenta. Corina é uma potência, principalmente pelo arco principal dela não ser o de uma mulher trans. Ela representa a essência do meu povo.
Você é uma artista potente, mas imagino que nem sempre encontrou as portas abertas. Enfrentou muitos preconceitos?
Lamentavelmente, é inegável que sim. Uma mulher trans, afro-indígena e nordestina enfrenta preconceitos. Ao longo da minha vida, enfrentei inúmeros desafios, alguns dos quais foram quatro, cinco, seis vezes mais difíceis. Tudo o que conquistei foi resultado de muito suor, lágrimas, trabalho árduo e esforço incansável. É algo que sempre enfatizo: tudo se torna ainda mais árduo quando você não se identifica como cisgênero.
Ser uma mulher trans, sergipana e afro-índigena já fez com que te limitassem? No sentido de limitar sua expressão artística ou sua capacidade de entrega profissional.
Sem dúvidas, minha identidade frequentemente resultou em restrições em minha expressão artística e ao reconhecimento profissional. Estereótipos, preconceitos e discriminação foram e muitas vezes ainda são obstáculos significativos, dificultando o acesso às oportunidades e o reconhecimento do meu trabalho. Apesar dos desafios, persisto com determinação e dedicação para mostrar o meu talento, valorizando minhas raízes. Minha arte é profundamente influenciada por quem sou. Em minha primeira música, Clã, celebro minha nordestinidade, reverenciando Sergipe e apresentando um vídeo-manifesto. Essa jornada me conduziu para a conquista de 27 prêmios, tanto nacionais quanto internacionais. Ao testemunhar a arte pouco valorizada do estado e as barreiras impostas pelo preconceito, percebi a necessidade de transformar essa realidade. Quis me posicionar e reivindicar meu espaço.
Na vida pessoal, como dribla e encara episódios de preconceito?
Eu sempre fiz alguns vídeos nas minhas redes sociais falando sobre situações que acontecem com o ser humano trans. O preconceito acontece de diversas formas, veladas ou escancaradas. Nunca me veem como uma mãe transprogenitora. Quando falo que é meu filhe, aí perguntam se foi inseminação artificial, perguntam se é adotado. Quando eu falo que eu sou mãe, perguntam se eu sou mãe de pet… Eu fiz um relato falando sobre como as pessoas enxergam meu filhe. Por ser uma criança muito alegre, as pessoas ficam assim, “nossa, é tão alegre”, em um tom que não é verdadeiro, como se não pudesse ser feliz dentro da nossa família. Então, é supervelado.
Acredita que a visibilidade que tem na TV faz com que alguns estereótipos sejam desmistificados?
Sem dúvidas. Precisamos nos ver e nos sentir representados. Estou vivendo e fazendo parte de um momento histórico na TV brasileira. Temos pessoas trans em diferentes horários de novelas. É muito importante que atores e atrizes tenham oportunidades, fazendo papéis que vão além de uma narrativa trans. Isso está contribuindo para um ajuste social necessário. Estou recebendo muitas mensagens e carinho de pessoas falando o quanto a Corina está sendo revolucionária. Esse momento histórico está sendo bonito.
Algum episódio da sua trajetória já fez com que cogitasse desistir da carreira artística?
Já pensei em desistir da minha carreira artística diversas vezes. Quando nascemos para trilhar um legado e abrir portas, entendemos que a nossa existência é um fruto. Mais na frente, a gente vai colher coisas muito maravilhosas para a comunidade trans e para todas as comunidades que eu faço parte,. Já cogitei desistir, mas o que me estimula a continuar é saber que eu estou abrindo portas para outras meninas, outras pessoas trans, outros corpos que são marginalizados.
Chegou a trilhar um plano B?
Sim. Eu cursei Publicidade, depois cursei História. Tentei trabalhar em outras áreas, tentei ser CLT, mas a arte sempre me chamava de alguma forma.
Como você gostaria de se ver nos próximos 10 anos?
Para o futuro, meu objetivo é persistir na busca pela representatividade, tanto na televisão quanto no cinema, por meio de novelas, séries e filmes. Além disso, almejo estabelecer uma presença duradoura nesses espaços, o que é crucial para a visibilidade e a valorização dos corpos trans.
Você é mãe, e observo que se refere com pronome neutro ao fazer posts e falar da criança. Como foi essa decisão?
Nós temos esse costume porque somos um casal trans. Acreditamos que impor um gênero, só porque tem um determinado órgão sexual é limitante e injusto. Ao não impor uma identidade de gênero específica para Apolo, criamos um ambiente que permite que elu se sinta livre para ser quem é, sem restrições ou preconceitos. E eu espero que no futuro, quando Apolo crescer, possamos ter uma sociedade mais justa, mais igualitária, que possamos ver nossos corpos num livro de biologia, que a minha maternidade seja falada e reconhecida.