Pepita: “Minha vida é vestir um colete à prova de balas para poder viver a maternidade”
Quando começamos a falar sobre capa de Dia das Mães aqui na Quem, buscamos uma mulher que, para nós, representasse a mãe brasileira. Alguém com vocação para a maternidade e que, de alguma forma, inspirasse outras mulheres que são ou têm o mesmo sonho de criar filhos. Pepita foi o nome unânime que ficou nas nossas mentes.
A artista é mãe de Lucca Antônio, de 2 anos, está na fila de adoção para aumentar a família — novidade que conta em primeira mão na entrevista a seguir — e tem uma maternidade tão tradicional, quanto fora da curva. Em primeiro lugar, ela é uma mulher trans e, no Brasil, infelizmente ainda é raro vê-las com filhos. Depois, ela não é mãe solo, está muito bem casada com o homem que ama, Kayque Nogueira, que é também genitor de Lucca, mais um fator incomum.
Se por um lado Pepita se diferencia de outras mulheres, por outro compartilha as alegrias e dores da maioria das mães brasileiras. Sem rede de apoio, tem dificuldade em conciliar filho, carreira, casamento e vida pessoal, mas dorme celebrando a vitória de ter atravessado mais um dia — mesmo sem saber se dará conta de tudo no dia seguinte. Há também a segurança que a própria família traz e a alegria de poder criar e ver crescer a criança que se tornou o seu maior propósito de vida.
De vez em quando se pergunta “será que eu sou uma boa mãe? Será que estou fazendo certo?”. A resposta vem direto do pequeno: “Ele sempre me mostra que sim, com uma atitude, uma fala, um sorriso ou um abraço. Às vezes ele me vê saindo para trabalhar e fala ‘mamãe, você está linda'”. E aí as dúvidas e angustias ficam pequenas.
Um outro ponto que diferencia Pepita é a transfobia que permeia toda a vida dela. Na verdade, é mais que um ponto, é uma violência direta que a atinge todos os dias e dificulta ainda mais a já árdua missão de criar um filho. “Minha vida é vestir um colete à prova de balas para poder viver a maternidade. As pessoas se incomodam de me ver numa fila de prioridade, se incomodam quando eu falo que eu sou mãe, me olham com espanto”, desabafa.
“Quando fiz 40 anos, falei ‘nossa estou viva’. Num País em que meu corpo parece uma carne no açougue, que é muito bom para sexo, mas difícil para o outro me assumir, eu estou viva”, diz ainda. Aos 41 anos, cantora, apresentadora, mãe, esposa e figura querida da internet e da publicidade. No Brasil, é raro ver esses predicados acompanharem uma mulher trans, mas caminham lado a lado com Pepita.
Isso porque, de acordo com relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), divulgado em 2023 e do site de PornHub, somos o país que mais mata pessoas trans, travestis e não-binárias no mundo inteiro, apesar de sermos também o país que mais consome pornografia com travestis. O dossiê da entidade revela 912 assassinatos por transfobia entre 2017 e 2022, fazendo com que a expectativa de vida da comunidade seja de 35 anos, enquanto a de uma mulher cisgênero é de 79 anos.
A pesquisadora e ativista Bruna Benevides, autora de Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras, fala: “Existe um processo histórico de hipersexualização e fetichização em relação aos corpos trans, lidos como fantasia, sem subjetividade, vontade ou desejo, mas sempre à disposição para quem nos procura. Muitas vezes objetos de desejo, eles causam simultaneamente repulsa entre quem se percebe compelido a buscá-los ou cogitar envolvimento, afetivo ou sexual, com pessoas trans”.
Apesar de tantas adversidades, o maternar de Pepita, como o de muitas mães, é um testamento de amor à própria maternidade. Envolve um amor tão grande e transformador que é capaz de mover montanhas inéditas pelo bem do filho. É por isso e muito mais, que ela é a mãe que estampa o nosso mês de maio. Viva você, Pepita, mamãe de Lucca!
Quem: Você sempre sonhou em ser mãe?
Pepita: A maternidade sempre fez parte da minha vida. Tenho duas sobrinhas, Isabelle e Vitória, que hoje já são mães, e ajudei minha irmã, Mônica, a criá-las. Sempre tive essa essência maternal de cuidar, de querer estar próxima… Quando chegou esse príncipe [Lucca] na minha vida, eu falei ‘estou pronta, vamos embora’.
Me parece que a relação com a sua família é muito boa. Como era na sua infância e como você cresceu enquanto criança trans?
Sempre me dei muito bem com a minha família, minha mãe é muito acolhedora! Sou a Priscila e tenho um irmão, Carlos Eduardo, que é um homem trans, então ela tem uma filha travesti e um filho trans. Ela sempre me apoiava, nunca ficava me olhando feio, me deixava bem à vontade para me expressar.
A gente se dá muito bem, Quando coloquei minha primeira prótese, ela me deu meu primeiro sutiã — ali a gente se entendeu. A partir da experiência comigo, ela entendeu a transição do meu irmão e foi bem tranquila. Ela sempre fala: “mãe é um ser para sentir a dor do outro”; é a mais pura verdade. Quanto ao meu irmão, sinto que ele tem muito orgulho de quem sou e isso é muito gratificante.
O que da criação da sua mãe você tenta levar para a criação do Lucca?
Ter uma vida normal e real. Quero que ele saiba que não tem tal brinquedo, mas tem esse outro aqui; eu gosto da fruta tal, mas não tem, tem essa outra e está tudo bem. Quando vamos ao Rio e está muito calor, meu filho toma banho de chuveirão, banho de tanque na casa da tia… É essa normalidade que tento trazer. Aprendo muito com minha mãe, com a minha irmã e com amigas que têm filho, sempre absorvo alguma coisa delas para trazer para minha minha maternidade.
E o que quer fazer de diferente?
Nada, tive uma criação muito boa. Estou criando uma criança que tem uma mãe travesti e ele vai entender o que é amor, o que é respeito, o que é dividir, o que é empatia… Esses são os lemas da minha família. Conhecemos o que é respeito a qualquer ser humano.
Depois de um dia inteiro com vocês, é impossível não perceber o amor imenso que você tem pelo Lucca. Como foi a primeira vez que vocês se viram?
Na primeira vez que o vi, não estava entendendo que era mãe. Eu tinha uma unha muito grande, sempre tive, e foi muito engraçado o primeiro banho, fiquei sem jeito, tentando não machucá-lo com as unhas… O tempo foi passando e entendi que é meu filho. O jeitinho dele, os olhares, os momentos de colo…
Quando aconteceu esse ‘clique’ de entender ‘sou mãe’?
Quando ele falou ‘mamãe’ pela primeira vez. Eu jurava que tinha alguém escutando algum áudio aqui em casa, não estava entendendo que tinha uma criança que estava falando mamãe aqui dentro. Quando percebi que era ele e que era a mim que ele estava chamando, fui aos prantos. Mãe, mãe, mãe, mãe mãe, mãe, mãe… Pensei, meu Deus, tenho filho! A palavra que me veio à cabeça foi ‘família’. Ali entendi que construí uma família e me entreguei. Foi extremamente emocionante e gratificante. Vou guardar essa cena no coração para sempre. Foi maravilhoso. É muito louco isso, né? Não acreditar que alguém pode te chamar de mãe e você ser mãe dessa pessoa.
“Tem dias que tenho medo, que me pergunto ‘será que eu vou conseguir? Será que vai dar certo?’. Isso aqui não é uma bolsa, é um ser humano que depende totalmente de mim”
Como tem sido a maternidade para você?
É muito bom, mas não posso desenhar uma Alice no País das Maravilhas. Tem dias que tenho medo, que me pergunto ‘será que eu vou conseguir? Será que vai dar certo?’. Isso aqui não é uma bolsa, é um ser humano que depende totalmente de mim. Me compreender como mãe é também entender que meu filho é o espelho das minhas atitudes e da minha postura.
Qual tem sido seu maior desafio na maternidade?
O outro entender que eu sou mãe, sim, e me respeitar. Respeitar que posso estar numa fila de prioridade ou numa clínica pediátrica que de repente; estar no shopping e não perguntarem de quem é essa criança. Quando eu entro na minha casa, é onde me sinto realmente segura e muito amparada. Essa é minha maior dificuldade.
Você tem uma rede de apoio para te ajudar?
Minha rede de apoio sou eu mesma, o pai e a avó paterna, que me amparou como nora/filha e se desprende do conforto da casa dela para cumprir o papel de avó sempre que preciso. Antigamente, eu me culpava por meu filho não ter uma rede de apoio, mas hoje eu agradeço todos os momentos que passo com ele. Agradeço por poder trocar fralda, fazer a comida dele, dar café da manhã, fazer isso e aquilo… Por tudo.
Como tem conseguido dar conta dessa demanda tão grande da maternidade com as demandas da sua carreira, que incluem muitas viagens e shows à noite?
Não é. Quando deito na cama, me pergunto ‘hoje eu consegui, mas amanhã como vai ser?’. Voltei a trabalhar quando o Lucca tinha seis meses, porque tenho uma equipe de nove profissionais que depende de mim, então eu precisava voltar. Chamei o Kayque para conversar e chegamos em comum acordo de ele ficar para que eu pudesse ir. No primeiro dia de trabalho, quando entrei na van, chorei muito, porque parecia que eu estava abandonando a minha cria.
Só depois fui entender que o pai dele estava ali, ele não estava com um estranho e eu estava saindo para trabalhar porque outras pessoas precisavam de mim — e mesmo que eu estivesse saindo por uma balada, uma festa, ele estava com o pai, estava tudo bem. Mesmo assim, nos primeiros shows foi complicado, eu ficava doida para sair do palco, para ligar, para saber se ele estava bem. Se a apresentação fosse em outro estado, ficava louca! Acabava o show, eu queria voltar para casa. Ia do palco para o aeroporto, para pegar o primeiro voo.
Como tem conseguido ter tempo para você, trabalhando e sem rede de apoio?
Consigo separar o meu momento mãe e o meu momento mulher. Sou mãe desde quando o meu filho acorda até a hora que ele dorme — e é nesse momento que eu e meu marido namoramos, comemos, discutimos e pensamos no novo dia que vai começar. Quando amanhece e o Lucca acorda, sou obrigada a cumprir aquela responsabilidade desde a hora que ele acordar até o momento que ele vai para a escola, que é 13h15. Só consigo trabalhar depois disso e tento encaixar gravações, eventos, o que for, a partir desse horário.
Se tiver que sair mais cedo, tenho que pedir para minha sogra vir e ser meu apoio. Tem toda uma estrutura que precisa ser montada para que eu possa sair para trabalhar tranquilamente, o que é complicado e cansativo demais. Essa jornada de maternidade é louca. Se perguntaram às mães se elas estão bem, tenho certeza que, de 10, cinco vão falar que não, que estão cansadas fisicamente e mentalmente.
Você sofre transfobia em relação à sua maternidade desde o momento em que anunciou que seria mãe. Acha que nesses dois anos piorou ou melhorou?
As pessoas nunca vão melhorar, a transfobia é meu vizinho. A transfobia é meu corpo num lugar público, é meu corpo numa passarela, numa capa de revista. Quando falo ‘muito prazer, sou a mãe do Lucca’, tenho que estar pronta para isso. Minha vida é vestir um colete à prova de balas para poder viver a maternidade. As pessoas se incomodam de me ver numa fila de prioridade, se incomodam quando eu falo que sou mãe, me olham com espanto quando vejo uma criança e digo ‘nossa, eu te entendo, mãe, porque eu tenho um desse em casa’. As pessoas não entendem que eu posso ter uma criança em casa, mas eu tenho e é o Lucca, a razão do meu viver. Eu tenho uma criança em casa que muda meus dias, que é meu parceiro e é extremamente carinhoso, inteligente, educado… Que hoje está com dois anos e quatro meses, mas que eu estou louca para ver crescer.
“As pessoas não entendem que eu posso ter uma criança em casa, mas eu tenho e é o Lucca, a razão do meu viver”
As pessoas também adoram opinar na educação alheia…
A única coisa que eu falo é: não se meta onde você não tem de lugar fala. Quem sabe o que é melhor pro meu filho, sou eu. Pode estar frio, se eu quiser botar o Lucca com uma regata, o filho é meu; pode dar um calor, se eu quiser botar um casaco e uma touca, é meu filho. Eu que educo e crio. É muito louco eu postar dando uma comida a ele e alguém comentar ‘nossa, na minha época não comia assim’. Problema seu! Tenho certeza que você não usa a mesma calça da sua época e você não é o mesmo bebê daquela época, você cresceu.
Você tem tomado medidas legais contra esses criminosos que comentam atrocidades nas suas redes sociais. Sente que a Justiça brasileira tem te ajudado?
A Justiça brasileira é cega, surda, muda e só tem um olhar: branco e padrão. Se for branco e padrão, ela defende. Mas, desde que eu me tornei mãe, não gasto dinheiro com uma bolsa de luxo, gasto com bom advogado para reparar as falas preconceituosas de quem se acha no direito de vir comentar na minha rede social coisas que eu não sou obrigada a ouvir. Você não é obrigado a me consumir ou me curtir, mas é obrigado a me respeitar como mulher e como mãe.
Por que eu posso te respeitar como mulher, como senhora, como mãe, como avó, e você não pode me respeitar? Que diferença existe? Se eu consigo chamar outras mulheres de ela, por que você quer me chamar de ele? O que eu te fiz para você me chamar de ele? É mais fácil humilhar os outros, ofender, diminuir. Eu vejo que essa luta vai ser muito cansativa, mas a única pessoa que vai me dar o prazer de viver essa luta toda se chama Lucca Antônio, que me dá o prazer de ser mãe e de, um dia, ser avó.
“Ser mãe não é jogo, se você não quer, não seja”
Falando em justiça, sentiu alguma dificuldade no processo de adoção dele?
Nenhuma. Acredito que porque era o meu momento de ser mãe, era minha hora. Ser mãe não é jogo, se você não quer, não seja. Na época, uma assistente social passou um dia aqui na minha casa, foi até a um show comigo, entrevistou o Kayque e tudo mais. Quando ela foi embora, falou: ‘eu sabia que aqui era uma casa de amor, que você estava pronta para ser mãe”. Foi aquele chororô!
Como foi esse processo? Estar na fila de adoção há mais de dois anos facilitou de alguma forma?
Não foi fácil. Adotar não é fácil e, para a gente, pessoas trans e travestis, é mais difícil. Durante o processo, te fazem muitas perguntas, do tipo ‘quem vai cuidar da criança? Quem vai sustentar?’, etc. Você sai da entrevista se perguntando ‘caramba, será que vou conseguir mesmo?’ (risos) Mas, nunca desista!
A assistente social vai botar um monte de dúvida na sua cabeça, mas amanhã alguém vai atravessar o seu caminho e falar que tem uma benção para a sua vida e muita coisa boa vai acontecer. Foi o que aconteceu comigo. Eu já estava quase desistindo de ser mãe, porque estava na fila há muito tempo, e aí o Lucca chegou.
E sua história se tornou um exemplo…
Uma das virtudes do ser humano é a paciência e o conselho que dou para todas as meninas iguais a mim é: nunca desista de nada na sua vida. Não desista da sua transição, não desista de botar o seu vestido de noiva, não desista de ser mãe, não desista de alcançar os seus sonhos. Tem tanta criança que precisa de amor, e nós da comunidade LGBTQIAPN+ somos cercados de amor.
As pessoas plantam dor na gente, mas somos cercados de amor. A gente ama ser feliz, beber, curtir, ver o amigo sorrir… Então, não tem motivo nenhum de criar tanto empecilho para uma adoção. A gente só quer fazer o outro feliz e a gente vai se garantir! Se eu tiver que tirar da minha boca para dar pro meu filho, vou dar, mas, deixar passar fome, não deixo.
Você tem vontade de adotar mais filhos?
Já estou no processo de adoção novamente! Quero ser mãe de uma menina! Isso para mim vai ser uma realização e eu acho que o Lucca merece uma irmã para dividir sonhos, histórias e até brigas de vez em quando… Vai ser uma benção para mim. Entrei na fila de adoção e agora é esperar um, dois, cinco anos. Espero que o Criador possa me dar muita vida e saúde para conseguir ver essa princesa chegando na minha vida.
Como foi a decisão de ter mais um filho?
Eu sempre quis e aí juntei com um cara que se chama Kayque… (risos) Meu marido sempre achou a ideia maravilhosa, sempre perguntava ‘nossa, amor, como é que seria o Lucca com uma irmãzinha, não sei o quê’. Ele acendeu uma chama dentro de mim e, como uma aquariana intensa que sou, ele falou isso à noite e quando acordei de manhã, falei: ‘é, vamos ter uma menina’.
O processo de adoção do Lucca foi atípico, pois ele é filho biológico do seu marido. Isso facilitou ou dificultou legalmente?
Não mudou nada. Inclusive, gostaria de deixar claro, também, que o processo não mudou em nada por eu ser uma pessoa pública. Passei por todos os trâmites e tive que esperar a documentação toda ser organizada para anunciar que era mãe.
“Anunciar que eu era mãe foi o dia mais feliz. Consegui dormir e acordar em paz”
E como foi o dia do anúncio público?
Eu estava superansiosa para expor isso e nunca vou me esquecer desse dia. Postei um vídeo no Dia das Mães, em que o Kayque abria a mão, aparecia a minha mão; eu abria e aparecia a do Lucca, pequenininha, fazendo uma figa. Parece que ele sabia que tinha que se proteger de todos os olhares que poderiam nos atravessar. Eu não esperava a repercussão que teve, a internet parou. Anunciar que eu era mãe foi o dia mais feliz, consegui dormir e acordar em paz.
Vocês têm contato com a genitora do Lucca?
Não e nem queremos. Esse é um assunto que nem existe aqui em casa, nem se fala nisso. A mãe do Lucca sou eu, o pai é o Kayque. Essa é a minha família.
Você já falou em outras entrevistas que se incomoda muito com a mania da sociedade de te colocar em caixinhas. Que caixas são essas?
A caixinha que eu digo é tipo “vem um mês do orgulho, vamos botar uma travesti para ser capa de revista para mostrar que a gente é inclusivo”. Eu não vivo só nessas datas, eu vivo o ano inteiro. Me incomoda também chegar num lugar e a pessoa falar “Cadê a criança?”, como quem diz “Você não é mãe? Sua cria tem que estar aqui com você. Ela está com quem?”.
O Brasil tem estatísticas muito violentas para pessoas trans, inclusive de expectativa de vida. Conversando com outras pessoas trans, muita gente fala da dificuldade que é fugir dessas estatísticas e, estando aqui na sua casa, dá pra ver que você fugiu de muitas. Você tem 41 anos, é mãe, tem uma mansão, é uma pessoa famosa, empresária…
Eu consegui sair porque tive oportunidade. Tenho pavor da palavra ‘visibilidade’, o que eu tive foi oportunidade. Tive pessoas que acreditaram em mim e, por isso, cheguei onde cheguei. Hoje tenho um time que acredita em mim, uma agência que acredita nos meus embates. Eu não quero ser a única nesse lugar, quero um dia aplaudir outra igual, ver que ela também construiu uma família, que é mãe. Para mim, isso aqui não é brincadeira ou modinha. Não estou brincando de casinha.
Quando fiz 40 anos, falei ‘nossa, estou viva’. Num país em que meu corpo parece uma carne no açougue, que é muito bom para sexo, mas difícil para o outro me assumir, eu estou viva. Quando alguém vem aqui na minha casa, que eu atendo a porta, perguntam se a dona da casa se encontra. Eu não posso ser dona dessa casa? Quando me veem dirigindo um carro ou com uma roupa cara, perguntam se é meu. É louco e assustador como as pessoas acham que eu não posso ascender.
“Eu posso estar na melhor foto, com a melhor roupa, eu sempre estou com colete à prova de balas, porque eu não sei de onde vai vir um tiro. Pode ser de uma arma, mas pode ser do incômodo de ver uma travesti sendo feliz”
Deve ser um peso ter que viver isso no seu dia a dia – além do cansaço precisar sobreviver todos os dias, né?
Eu posso estar na melhor foto, com a melhor roupa, eu sempre estou com colete à prova de balas, porque eu não sei de onde vai vir um tiro. Pode ser de uma arma — na última semana uma mana igual a mim foi baleada saindo de uma balada aqui em São Paulo. Mas pode ser do incômodo de ver uma travesti sendo feliz, bebendo sua própria bebida, dançando funk, sendo desejada, paquerada e amada. É muito doloroso pro outro ver isso.
Mas, aos 41 anos, comecei a entender que eu não sou errada em nada. Eu não sou a coisa abominável que você um dia me desenhou. Não sou a mal amada, não sou o desgosto da minha família, porque eu tenho uma bela família e não sou a vergonha dela. Eu comecei a entender que tudo isso que me chamam são eles mesmos. Essa é uma dor sua, é um medo seu e não meu. Todo dia quando acordo de manhã, antes de fazer minha higiene bucal, olho para o espelho e agradeço por mais um dia que vai começar.
Me conta um pouquinho sua trajetória profissional? Como chegou até aqui?
Cheguei aqui porque me roubaram. Tinha uma pessoa que cuidava da minha vida profissional e graças a ela, eu perdi tudo (minha conta no Spotify, dinheiro em conta, tudo). Mas um ser humano chamado Fátima Piçarra [CEO da Mynd] entrou na minha vida e eu sou uma cria dessa agência e dessa mulher que acreditou em mim. Ela foi visionária e entendeu que eu não era um produto só pro sexo, que eu tinha talento e potencial.
Comecei como cantora de funk, o que sou até hoje, mas agora também sou apresentadora, atriz e muito mais. Vocês me verão na telinha e na telona em breve! Vocês vão me ver da maneira que eu quiser, até, de repente, como uma vereadora. Nada é impossível para mim. É difícil, mas impossível não é. Meu sobrenome é resistência, então eu posso bambear, tropeçar, escorregar e até cair, mas eu levanto.
Você tem vontade de entrar na política?
Sim! Sei que vou incomodar e, de repente, botar algumas pessoas que me rodeiam em risco, mas estou pronta. Se for o meu destino, tudo bem.
Você é filiada a algum partido? Já tem planos políticos?
Não, mas tenho vontade de ter essa experiência. Tudo que eu faço na minha vida, eu não visto a camisa, eu coloco. Faço o meu melhor. Por temos eleições esse ano, acho que não é agora, preciso estudar mais e comer mais a política. Eu acho que esse ano não, mas em breve.
Para finalizar, o que é que o Lucca te ensina?
A ser forte. Sou chorona e, às vezes, a minha mente me trai e fico me perguntando “será que eu sou uma boa mãe? Será que estou fazendo certo?” e ele sempre me mostra que, sim, com uma atitude, uma fala, um sorriso ou um abraço. Às vezes, ele me vê saindo para trabalhar e fala “Mamãe, você está linda”. Esse para mim é o amor mais puro que existe nesse mundo. O amor mais real desse mundo é o amor de filho para mãe e de mãe para filho.
Créditos:
Texto e produção executiva: Mateus Phyno (@phynocomph_)
Fotografia: Rhaiffe Ortiz (@rhaiffe)
Styling: Miguel Cuenca (@miguelcuenca)
Beleza: William Cruz (@williamcruzes)
Vídeo: Luíza Nóbrega (@luizanobrega) para TWZ (@twz________)
Assistência de fotografia: Natalia Mitie (@natimitie) e Jozzuu JZ (@jozzuuphoto)
Produção de moda: Will Santos (@wll.uil)
Assistência de vídeo: Tiago Zani (@tiagozani)
Retoque: VW Retouch (@vwretouch/ @victorwagnerr)
Catering: Samir Amis (@samir.amis)