Refugiados afegãos relembram drama para fugir da guerra, surto de sarna e falam de alívio em abrigo no litoral de SP
Especialistas apontam que fluxo migratório deve continuar e Ministério da Justiça planeja implementar uma política específica para acolhimento de refugiados afegãos.
Refugiados afegãos tiveram de ficar semanas acampados no aeroporto de Guarulhos por falta de vagas em abrigos, o que os levou a enfrentar um surto de sarna. Neste fim de semana, eles finalmente começaram a enxergar um futuro no Brasil. Repórteres do Fantástico acompanharam esse momento de alívio e esperança.
O caçula Danyal tem quatro anos. Fátima tem seis. E Asra, a irmã mais velha, tem nove.
Como você está se sentindo?
O pai sopra respostas em inglês, mas ela tem vergonha.
“Quando estava no Afeganistão, ela era a primeira da turma”, diz.
Desde o meio de junho, a família estava acampada no saguão do aeroporto de Guarulhos – junto a muitos outros refugiados.
Uma situação que ficou insustentável depois que médicos confirmaram um surto de sarna entre eles.
A crise sanitária foi só o último obstáculo de um caminho que começou há quase dois anos. Em agosto de 2021, o Talibã retomou o poder no Afeganistão depois de 20 anos, com a saída das tropas americanas do país.
Enquanto imagens desesperadoras comoviam o mundo mostrando pessoas penduradas em trens de pouso e caindo do céu, o pai de Asra sentiu a ameaça já marcada no corpo.
“O Talibã ameaçou me matar e me fez largar o meu emprego. Eu já havia sido ferido nove anos atrás pelo Talibã. Eles atiraram na minha perna. Veja”, diz o engenheiro Hashmat Ullah Ahmadi Bayat.
A viagem da família começou por terra. “Escapei um mês depois e fui para o Irã. Eu trabalhava no Irã, mas lá não permitiam que meus filhos estudassem”, conta.
A preocupação com a educação dos filhos levou a família a buscar o visto humanitário brasileiro. Da fuga de Cabul até o desembarque em Guarulhos, foram 18 meses.
Mais de 2,5 milhões de pessoas já deixaram o Afeganistão. Cerca de nove mil entraram no Brasil, um dos poucos países do mundo que oferecem o visto humanitário e, com isso, acesso a direitos como saúde e educação e trabalho.
Foi com essa esperança que chegaram ao país os afegãos que essa semana passaram pelo surto de escabiose, doença conhecida popularmente como sarna.
A solução encontrada para a crise sanitária foi abrigar os refugiados na colônia de férias do Sindicato dos Químicos de São Paulo, na Praia Grande, litoral sul do estado.
Mas, quando tudo parecia estar dando certo, a prefeitura bloqueou a entrada dos ônibus que levavam os afegãos para a cidade, alegando riscos à saúde da população.
As famílias afegãs esperaram por mais de três horas.
Foi necessária a intervenção do Ministério da Justiça.
“O diálogo sempre deve ser o caminho, não há espaço, não há legalidade numa ideia de impedir a entrada em qualquer cidade brasileira”, diz o ministro da Justiça, Flávio Dino.
Em nota, a prefeitura de Praia Grande disse que, para selar o acordo com o governo federal, solicitou a presença de policiamento federal ou estadual e uma equipe médica na colônia de férias. E afirmou que, após levantamento da Secretaria Municipal de Saúde, foi constatado que os refugiados estavam saudáveis e sem sinais de sarna.
Na madrugada de ontem, os afegãos chegaram à colônia e passaram a ter acesso a cozinhas e banheiros com água quente. Quarenta pessoas estão sendo vacinadas no protocolo para o refugiado. Eles estão recebendo imunização contra poliomielite, contra o sarampo e a covid.
Entre os vacinados pela prefeitura estava a família de Navid Haidari, que trabalhava como intérprete da Otan durante a ocupação militar pelos Estados Unidos.
“Quando as forças internacionais abandonaram o Afeganistão, nós fomos deixados para trás. Caminhamos por 28 horas com as crianças nas montanhas e no deserto, para cruzar a fronteira”, diz.
Navid, agora, respira aliviado.
“Eu estou muito feliz. Você pode ver no meu rosto. A religião e as fronteiras só dividem as pessoas. Mas nós somos humanos, nós amamos uns aos outros.”
Nooria veio ao Brasil com o marido e os três filhos. A mais velha já está aprendendo português.
Nooria é jornalista e militava pelos direitos das mulheres no Afeganistão.
Digo que os papéis mostram que ela teve uma profissão, uma vida de trabalho, cidadania, direitos…
“Eu não tenho esperança. eu quero voltar a trabalhar, num escritório”, diz Nooria.
O episódio dessa semana deixou um alerta.
“O Talibã continua no poder, as perseguições continuam. Não existe perspectiva da situação econômica do país melhorar. Então esse é um fluxo que deve continuar para o Brasil”, diz o advogado e especialista em direitos humanos e migração Victor del Vecchio.
“Milhares de pessoas afegãs vão chegar ao Brasil. O Brasil se comprometeu internacionalmente a receber as pessoas do Afeganistão. A Defensoria Pública da União defende que as pessoas afegãs recebam no Brasil um tratamento digno. Para que não haja a retenção de pessoas no aeroporto é fundamental que haja um plano consistente a partir de agora, com a coordenação do governo federal”, diz João Chaves, coordenador de Migrações e Refúgio da defensoria Pública da União.
O Ministério da Justiça planeja implementar uma política específica para acolhimento de refugiados afegãos.
“O desafio é garantir que não haja mais acumulação de afegãos e afegãs no aeroporto de Guarulhos. Isso evidentemente é incompatível com as condições humanitárias e também com a própria legislação brasileira. A partir daí outros órgãos de governo com certeza vão cuidar dos outros temas. Acesso a trabalho, saúde, assistência social e assim sucessivamente”, diz o ministro Flavio Dino.
Após o primeiro dia na colônia de férias, o surto de sarna começou a ser controlado.
“A boa notícia que nos chegou foi que a situação de saúde não é tão séria ou severa. É uma coisa de fácil tratamento, de fácil a cura e de fácil estabilização”, diz Maria Beatriz Bonna Nogueira, chefe do escritório da Agência da Onu para Refugiados no Brasil.
O pai de Asra me convida pra conhecer o quarto onde está ficando.
“Quais são seus sonhos? O que você espera do futuro?”
“Que meus filhos tenham educação. Hoje estou feliz porque posso pensar no futuro das minhas filhas. Eu decidi ter um futuro nesse país. “
Seja muito bem-vindo.
“Muito obrigado. infelizmente, não posso te oferecer nada. ah, mas nós temos chá afegão, quer? “
A expectativa é que, em breve, as crianças do grupo de refugiados voltem às salas de aula, algumas depois de quase dois anos sem estudar.
O futuro de Asra e seus dois irmãos começou com a primeira ida deles à praia. Dando passos que não são mais apenas pela sobrevivência.