Xadrez do efeito Bolívia sobre o jogo político brasileiro, por Luis Nassif

A cada dia que passa fica mais claro que a bandeira da anticorrupção é um biombo político visando tirar as últimas garantias constitucionais para abrir espaço para uma nova Noite de São Bartolomeu

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Cena 1 – o golpe na Bolívia

A violência do golpe na Bolívia deve servir de alerta ao Brasil. Quem assume o poder é o fundamentalismo moralista, trazendo de volta a violência clássica do continente: golpe militar com violência, prisão indiscriminada, incluindo até autoridades do Tribunal Superior Eleitoral, invasão e destruição das residências de Evo Morales e seus ministros, repressão violenta nas ruas. Ponto central: o golpe surgiu a partir da Guarda Nacional, não das Forças Armadas.

Aliás, com ordem de prisão expedida contra Evo, mais as suspeitas de uma operação visando eliminá-lo fisicamente, mais as prisões ocorridas até agora, sugere-se aos bons cultivadores da retórica dos falsos paralelismos, que parem de invocar os erros políticos de Evo para justificar um golpe militar. Vale quando erros políticos provocam derrotas políticas, não como álibi para um golpe.

Cena 2 – as semelhanças Brasil-Bolívia

A violência boliviana tem todos os ingredientes disponíveis no Brasil, a começar por uma ascensão social prévia inédita de setores historicamente abandonados, criando um quadro de reações:

  • Ultradireita fundamentalista e violenta.
  • Mídia insuflando a opinião pública.
  • Ressentimento da classe média com a ascensão das maiorias.
  • Politização crescente das forças policiais.
  • Ministério Público atuando como gendarme do golpe, inclusive decretando a prisão de juizes do Tribunal Superior Eleitoral.
  • Apoio do governo Donald Trump a aventuras fundamentalistas na América Latina.

Peça 3 – as diferenças Brasil-Bolívia

Por enquanto, há duas diferenças fundamentais entre Brasil e Bolívia: o STF (Supremo Tribunal Federal) e as Forças Armadas, até agora sob controle de legalistas. Daí a importância de preservar essas conquistas, que não são permanentes.

O STF é a última barreira a um aprofundamento do arbítrio. Mas nele há uma luta permanente dos legalistas contra as forças dos porões.

A cada dia que passa fica mais claro que a bandeira da anticorrupção é um biombo político visando tirar as últimas garantias constitucionais para abrir espaço para uma nova Noite de São Bartolomeu, que impeça a volta de Lula ao jogo político. A ofensiva de Luis Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux contra o garantismo já não dispõe do atenuante da falta de visão sobre as consequências de suas posições: é carne fresca para o tigre do golpismo.

A segunda frente contra o STF vem sendo armada por Sérgio Moro, tentando estimular o Congresso a aprovar uma PEC trazendo de volta a prisão em segunda instância, mesmo atropelando cláusulas pétreas da Constituição.

Nas Forças Armadas calhou um Chefe do Estado Maior legalista e responsável, que sucedeu um militar com franca atuação política. Nem por isso reduziu o preconceito antilulista e antipopulista histórico nas Forças Armadas.

Em ambas as frentes, portanto, as barreiras ao arbítrio são tênues. E a falta de convicção democrática da chamada opinião pública midiática ajuda a alimentar o tigre.

Por exemplo, estão minimizando dois episódios relevantes. Um, o recente decreto de Garantia de Lei e Ordem (GLO) barrando o acesso ao STF, a pretexto de resguardar o encontro dos BRICS na Esplanada dos Ministérios. Outro, o fato de o governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, utilizar sua Polícia Civil como polícia política.

São transgressões que, naturalizadas pela opinião pública, vão permitindo os avanços do estado de exceção. E a radicalização da política guarda relação diretamente proporcional à dimensão política de Lula no quadro atual.

Peça 4 – o papel de Lula

Steve Bannon, o ideólogo da ultradireita, avaliou bem o papel de Lula no jogo ideológico global, em entrevista concedida à BBC News.

Tratou Lula como o maior ídolo da “esquerda globalista”, agora que Barak Obama está fora do jogo. Dois pontos são relevantes: o fato de colocar Lula ao lado (e, agora, à frente) de Obama; e o fato de ambos representarem o que ele chama de “esquerda globalista”, deixando subtendido que o ideário bolsonarista é o do nacionalismo fechado. Tornou-se liberal por questões táticas.

Além disso, o golpe na Bolívia deixou claro o efeito-dominó do impeachment. O Brasil de Lula e Dilma atuava como fator de moderação e de equilíbrio para as disputas regionais, moderando o radicalismo de Hugo Chávez, fortalecendo o trabalho admirável de Evo Morales. Não fosse o impeachment e o bolsonarismo, a esta altura o Brasil estaria alinhado com a OEA (Organização dos Estados Americanos) garantindo novas eleições, mas com a manutenção de Morales no cargo até o final do mandato.

O terraplanismo de Bolsonaro tornou o Brasil mero apêndice do trumpismo, isolou-o progressivamente da liderança do continente, embarcando na canoa furada do Grupo de Lima, deixando o continente à deriva e à mercê de fundamentalistas. E com um caldeirão de ódio espalhado por todos os cantos

Peça 5 – as torrentes de ódio

Por trás desses dois diques, do STF e do Alto Comando, há um oceano de ódio, revanchismo, envolvendo milícias e grupos com pouco apreço pela vida humana, uma polarização que irá se acirrar mais ainda com a libertação de Lula. Daí a importância de Lula ponderar esses fatores em sua estratégia política.

A estratégia tem lógica. Um primeiro tempo de discursos eloquentes visando despertar a militância, reorganizar o PT, prepara-lo para as eleições municipais do ano que vem e mostrar cacife para pilotar a reorganização das esquerdas  Um segundo tempo, com um discurso racional, de novo projeto nacional, visando consolidar a frente das esquerdas em torno de propostas factíveis, e definindo uma candidatura para 2022. O segundo tempo deverá ser necessariamente flexível para permitir o terceiro tempo, os pactos que se darão no 2º turno das eleições, visando aglutinar as forças democráticas de espectro mais amplo.

O grande problema é o timing, o sentido de tempo. O caldeirão do golpe-sobre-golpe está sendo aquecido pelos seguintes fatores:

  • O fator Bolívia, mais o fator Chile, sendo explorados pela ultradireita.
  • O impacto da libertação de Lula, mostrando seu potencial eleitoral.
  • As investigações da morte de Marielle Franco, acuando a cada dia os Bolsonaro.
  • A revanche da Lava Jato, que provavelmente induzirá a incursões da banda radical da primeira instância do Ministério Público e da Polícia Federal.
  • As ofensivas das milícias bolsonaristas, com a radicalização retóricas das redes sociais podendo induzir a atos mais graves no mundo real.

Mais que nunca, haverá necessidade de bom senso e de bombeiros atuando ininterruptamente.

Ficará claro, nesses tempos de paroxismo, que incursões oportunistas a favor da radicalização, por parte de Ministros do STF, procuradores, políticos, terão graves consequências para a paz social brasileira. Essa mesma precaução tem que ser adotada pelas esquerdas, sem se deixar contaminar pelo falso triunfalismo que se seguiu à libertação de Lula.

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Fonte jornalggn
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