Após um século, ideias de Ruy Barbosa ainda regem diplomacia

Postura de neutralidade adotada pelo Brasil nas relações internacionais estava no cerne dos princípios defendidos pelo diplomata morto em 1923. Guerra na Ucrânia é exemplo mais atual.

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Para muitos especialistas, o que fez Ruy Barbosa (1849-1923) no célebre discurso que o consagrou como “Águia de Haia”, na Conferência da Paz ocorrida na Holanda em 1907, foi sedimentar os princípios basilares da diplomacia brasileira. Sua ideia de neutralidade, presente na defesa incondicional da igualdade dos Estados, se faz presente ainda hoje nas relações internacionais mantidas pelo Brasil, exatamente 100 anos após sua morte.

Jurista, advogado, político, diplomata, escritor, jornalista, tradutor e orador, Barbosa foi sobretudo um intelectual. E, como tal, representou o pensamento de toda uma era — exatamente aquela que pretendia o fim da monarquia brasileira e planejou os primeiros passos da jovem república nascida do golpe ocorrido em 15 de novembro de 1889, movimento do qual Ruy Barbosa foi um dos articuladores.

Inserção do Brasil no cenário internacional

“A participação brasileira na Conferência de Haia [em 1907], com o fortalecimento do direito internacional, significou a inserção do Brasil no cenário internacional. Foi quando assumimos o ingresso na diplomacia multilateral”, analisa o jurista e cientista político Enrique Carlos Natalino, pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Natalino lembra que teses relevantes apresentadas por Barbosa ali se tornaram espinha dorsal para as relações diplomáticas brasileiras. É o caso do princípio da igualdade jurídica dos Estados. “Isso garantiria que Estados fracos ou militarmente desarmados também tivessem voz nas relações internacionais”, explica. Sim, foi um jeito maroto de puxar a sardinha para o lado brasileiro.

“Em Haia, Ruy Barbosa defendeu a neutralidade porque este era um interesse absoluto não só do Brasil, mas de todos os países do Atlântico Sul”, comenta o historiador e cientista político Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

“Neutralidade pragmática”

De certa forma, esse legado persiste. E é visto, por exemplo, na maneira como o Brasil se posiciona frente ao conflito russo-ucraniano: sob o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a postura é de tentar mediar o conflito de forma a promover a paz, não exercendo sanções econômicas a nenhuma das partes, tampouco pensando em qualquer ajuda militar.

Para alguns especialistas, isso é o que pode ser chamado de “neutralidade pragmática”. Em outras palavras, seguindo a cartilha de Barbosa, o Brasil pretende manter boas relações com os envolvidos no conflito ao mesmo tempo que recorre às letras do direito internacional para tentar um acordo de pacificação.

“Nova neutralidade”

O especialista em relações internacionais Pedro Brites, professor na Fundação Getúlio Vargas prefere usar o termo “nova neutralidade”.

“Um pensamento muito alinhado a um Brasil entendido como potência média”, contextualiza. “Essa nova neutralidade não significa se abster de comentar, de agir, de buscar a paz frente a conflitos, mas sim um entendimento de que o que deve prevalecer é o direito, a igualdade jurídica das nações. Afinal, uma conflagração é algo que interfere nas dinâmicas internacionais de forma mais ampla, então os demais Estados, dentro de fóruns adequados, devem participar das decisões.”

Tal estratagema garantiria também que países como o Brasil tivessem voz. E, ao mesmo tempo, era embasada pelo pragmatismo. “Tomar um lado significa um custo muito alto para um país como o Brasil. Pouco interessa para o país, que tem poucos ganhos efetivos assumindo um ou outro lado”, diz Brites.

O professor lembra que no caso da guerra russo-ucraniana, por exemplo, o Brasil já “deu sinais que não compactua com a invasão” e “condenou a violação da integridade ucraniana”, mas, ao mesmo tempo, evita tomar passos além disso.

“Porque outros países do Sul Global não têm essa postura, e o Brasil é uma potência média, então faz mais sentido atuar de forma pragmática, defendendo uma postura voltada para o mecanismo de resolução do conflito em vez de adotar sanções unilaterais ou posturas veementes”, argumenta.

Pesquisador do German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo, na Alemanha, o cientista político Leonardo Bandarra tem visão semelhante sobre essa postura. “A atual posição ativa do Brasil é de procura de uma resposta legal, mas reconhecendo a soberania tanto da Rússia quanto da Ucrânia e o papel de culpa da Rússia por ter desobedecido ao direito internacional, o que vai bem na linha do que Barbosa poderia propor”, diz ele.

“Como princípio geral, o multilateralismo faz sentido. E essa postura de nova neutralidade, se a gente quiser pegar o conceito de Ruy Barbosa”, acrescenta Brites.

“Ser neutro não significa ser omisso”

Cônsul-geral do Brasil em Vancouver, no Canadá, o diplomata Renato Mosca de Souza concorda que Ruy Barbosa “teve papel precursor na construção da doutrina diplomática brasileira” posto que ele “defendia que a neutralidade e a imparcialidade não poderiam prevalecer diante da agressão e do uso da força”.

O diplomata ressalta que Barbosa “defendia o respeito ao direito internacional como base jurídica e doutrinária”. “A neutralidade decorre do fato de o Brasil não ver na guerra uma alternativa, pois o uso da força está em desacordo com nossos mais caros princípios. Ser neutro, porém, não significa ser omisso, o que não somos absolutamente”, pontua.

“O Brasil nunca teve uma neutralidade omissa. Ao contrário, assume uma neutralidade ativa, buscando soluções de conflitos sem se engajar diretamente, lutando para fazer valer os tratados internacionais”, reforça o cientista político Márcio Coimbra, presidente da Fundação Liberdade Econômica.

As diretrizes desse relacionamento internacional estão explícitas no artigo 4º da Constituição, em que fica claro que o Brasil respeita a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, entre outros pontos.

“Nossa história do último século tem mostrado que somente abandonamos a neutralidade diante da agressão”, frisa Mosca de Souza. “Interessam-nos o diálogo e o entendimento com todos os países como forma de valorizar a igualdade das nações, a convivência pacífica e o respeito ao direito internacional. Não por outra razão valorizamos o multilateralismo como locus apropriado para a superação de dificuldades e construção de consensos”, destaca o diplomata.

Mas essa ideia de neutralidade não precisa nem deve ser incondicional. “Neutralidade não é sempre positiva, mas ela deve ser ligada aos interesses nacionais, daí vem o pragmatismo”, diz Bandarra. “Nas guerras mundiais, por exemplo, foi de interesse do Brasil tomar partido, mesmo que tardiamente. No caso da guerra atual [entre Rússia e Ucrânia], talvez venha a ser, mas não sei se já é o caso. Acho que a lição de Ruy Barbosa, e que vem sendo bem aplicada no caso do Brasil, é de ter pragmatismo e só tomar ‘um partido’ depois de muito cogitar as alternativas e balancear as consequências desta decisão.”

Bolsonaro como ponto fora da curva

Professor de relações internacionais na ESPM, o economista Roberto Georg Uebel também prefere chamar a postura brasileira de “neutralidade pragmática”. “O que Ruy Barbosa pregava não significa ‘ficar em cima do muro’ ou deixar de tomar posicionamentos no sistema internacional”, contextualiza.

“Mas se entende que o Brasil garantidor da paz deve ser garantidor do direito internacional. Sempre e até hoje prepondera nessas relações a defesa do direito internacional, da autonomia dos Estados e da integridade territorial”, aponta.

“O ponto fora da curva foi a política externa do ex-presidente Jair Bolsonaro, em que houve uma política externa isolacionista. Desde que o Brasil se tornou independente, a política externa sempre seguiu o mesmo padrão, e agora o governo Lula volta a esse trilho da diplomacia brasileira.”

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Fonte dw
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