Para se salvar, aliados de Bolsonaro podem abandonar ex-presidente?
Construção de consenso após atos antidemocráticos pode favorecer Lula e ofuscar oposição bolsonarista neste início de mandato, avaliam analistas. A dúvida é quanto tempo união irá durar
A resposta foi quase uníssona nos Três Poderes: após os ataques em Brasília no domingo, 8, políticos de todos os espectros, ministros do Supremo Tribunal Federal e membros do governo se uniram para dizer que “providências” serão tomadas contra os responsáveis, inclusive financiadores. Paralelamente, empresários do alto escalão do capitalismo brasileiro também se manifestaram em repúdio aos atos. É um raro consenso em um cenário nacional que, nos últimos anos, se acostumou a desavenças ferrenhas.
Para fontes ouvidas pela EXAME, esse ambiente político, se bem manipulado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e aliados, pode vir a favorecer o novo governo.
Enquanto isso, aliados de Jair Bolsonaro (PL), ao menos na política institucional, podem não estar dispostos a se sacrificar para defender o ex-presidente, embora a força política do bolsonarismo deva persistir.
“Construção de consenso nunca é ruim para o Executivo”, resume o cientista político Creomar de Souza, da consultoria política Dharma, em Brasília.
“A forma como as coisas aconteceram, em certo sentido, coloca na defensiva essa direita que tentava se articular para ficar na oposição a Lula. Houve a criação de uma situação que torna indefensável qualquer tipo de discurso que justifique os atos vistos”, diz.
No mercado financeiro, leitura parecida chamou atenção em relatório de analistas do banco JP Morgan, que avaliaram que um enfraquecimento da oposição, se confirmado, pode favorecer Lula e abrir caminho para pautas mais fortemente alinhadas à esquerda. Isso ocorreria “ainda que o Congresso continue dominado pelos partidos de centro”, escrevem os analistas.
Os parlamentares alinhados ideologicamente a Bolsonaro devem permanecer com o ex-presidente, mas boa parte dos deputados e senadores de centro e centro-direita que apoiaram sua candidatura à reeleição não são necessariamente bolsonaristas. A lealdade desse outro grupo fica agora posta à prova, diz Adriano Laureno, gerente de análise política e econômica da Prospectiva Consultoria. “Muitos o apoiaram porque eram beneficiados ou porque lideranças determinaram”, observa.
Esse grupo, que compõe uma parte importante dos votos no Congresso, que Lula quer trazer para si, “pode abandonar e tentar se afastar um pouco mais de Bolsonaro e usar esse episódio como justificativa”, diz Laureno. Alguns podem se tornar “independentes” e outros podem encarar os atos terroristas como um motivo para migrar para a base do governo Lula. “Pode ser um momento de facilitação para virar o discurso e passar a fazer parte da base”, diz.
Indefinição no PL
Um grande símbolo desse questionamento sobre o futuro apoio institucional a Bolsonaro é o PL, partido de Bolsonaro desde novembro passado. Logo após os episódios em Brasília, o presidente da legenda, Valdemar da Costa Neto, disse que a violência vista no domingo “não representa o nosso partido, não representa o Bolsonaro”. Apesar da mensagem tentando desvincular o ex-presidente dos atos, o parlamentar foi mais enfático do que vinha sendo nas semanas anteriores, e afirmou que era um dia “triste para o país”.
Membros do PL estiveram nos atos em Brasília e, no dia seguinte, o líder da legenda na Câmara, Altineu Côrtes, disse que filiados que participaram serão expulsos, segundo a coluna da jornalista Bela Megale no jornal O Globo. Procurada pela EXAME, a legenda não confirmou oficialmente.
Vale lembrar que, logo na primeira grande votação do governo Lula, a PEC de Transição, o PL foi o principal partido que votou contra a proposta, ao lado de Republicanos, ligado à bancada evangélica, e do Partido Novo.
Era dezembro e o governo ainda não estava empossado, mas a votação, que abriu espaço fora do teto de gastos para promessas de campanha do PT e recomposição de investimentos, foi vista como crucial para o futuro de Lula (o placar terminou com 331 votos a favor e 163 contra, com apoio de todas as demais legendas do Centrão, como o PP de Arthur Lira, até então aliado de Bolsonaro).
O PL, impulsionado por Bolsonaro nas eleições 2022, terá a maior bancada da Câmara na próxima legislatura, a partir de fevereiro. Parte desses eleitos são da “nova direita” e muito próximos da visão política e ideológica de Bolsonaro; uma outra parte, porém, é da “velha guarda” da política e do Centrão, e pode mais facilmente abandonar Bolsonaro caso isso se prove vantajoso em recursos do Orçamento e para evitar represálias judiciais.
“O ponto é o dia seguinte dentro do sistema político. E o dia seguinte, para o PL, vai colocar Valdemar da Costa Neto em uma situação muito difícil. Valdemar tem assumido um posicionamento de agradar muito à bancada bolsonarista dentro do PL, na crença de que Bolsonaro é a maior saída para que o PL continue grande”, diz Souza, da Dharma.
“Mas o que aconteceu no domingo pode colocar Bolsonaro em uma posição mais isolada, talvez obrigando Valdemar a mudar de postura — até pela própria sobrevivência, pois ele já responde a processos”, avalia ele. Movimentos de governadores aliados a Bolsonaro, como Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo e Romeu Zema (Novo) em Minas Gerais, também terão de ser observados, diz o cientista político.
EUA não teve união contra Trump
Os ataques de domingo têm sido, de forma inevitável, comparados à invasão do Capitólio nos EUA, em 6 de janeiro de 2021. Na ocasião, uma horda de apoiadores de Donald Trump (incentivados pelo próprio presidente minutos antes) invadiram a sede do Congresso americano.
Há algumas diferenças, porém: por lá, somente o Congresso foi invadido (e não a Casa Branca e a Suprema Corte), embora com repercussões mais sérias, uma vez que congressistas estavam dentro do prédio. O presidente Joe Biden também não havia ainda tomado posse, o que só ocorreu em 20 de janeiro daquele ano. Também houve maior confronto com a polícia no local.
Como caminha para ocorrer no Brasil, as cenas lamentáveis vistas na invasão (que deixou ao menos cinco mortos) ajudaram a construir algum consenso contra Trump. O ex-presidente foi banido das principais redes sociais e, em alguma medida, perdeu prestígio.
Por outro lado, o Partido Republicano não abandonou Trump completamente. Ainda que o ex-presidente não fosse unanimidade na ala tradicional dos republicanos, os poucos congressistas que votaram contra o ex-presidente foram ostracizados na legenda, que se tornou mais dependente do trumpismo do que era esperado.
Além do Partido Republicano, a Suprema Corte americana também já vivia maioria de alinhados a Trump na ocasião. O mesmo não ocorre no Brasil, em que a maioria dos ministros, em um primeiro momento, têm mandado mensagem de que estão unidos na repulsa aos atos — como visto na nota conjunta assinada na segunda-feira pelos presidentes dos Três Poderes, incluindo a presidente do STF, Rosa Weber.
Em artigo para a EXAME, o cientista político Sergio Praça relembrou essa diferença e escreve que, no Brasil, não há um partido político forte por trás do bolsonarismo, ao contrário do que ocorre com o trumpismo. “O Brasil não tem um partido político pró-golpe, ainda bem”, diz no texto.
Ainda assim, políticos que apoiam Bolsonaro de forma ideologicamente próxima não devem de fato se desligar do presidente. Bolsonaro teve mais de 58 milhões de votos na eleição presidencial, foi capaz de levar uma enxurrada de nomes ao Congresso e milhares de extremistas a acampamentos pelo país. O capital político do ex-presidente, se permanecer, pode ser um incentivo para que algumas lealdades permaneçam.
“O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, sabe que há um eleitorado sedento por tirar o PT do poder daqui a quatro anos. Sua aposta na volta do bolsonarismo nas eleições de 2026 é politicamente correta. Alguém haverá de captar essas pessoas que são, em pequena parte, terroristas e, em imensa medida, antipetistas ferrenhas“, escreveu Praça. “O problema de Costa Neto é como manejar o bolsonarismo sem arriscar ser preso por conspiração política ou algo semelhante.”
A sonhada unidade para Lula?
A vantagem, para Lula, é que o presidente ganhou “de presente” uma unidade dos espectros democráticos que ele próprio vinha buscando desde a eleição. “Do ponto de vista mais macro, creio que as imagens de violência por parte de manifestantes bolsonaristas acabem legitimando o discurso que vinha sendo trazido pelo PT — de que teriam vencido eleitoralmente uma força antidemocrática”, diz Laureno, da Prospectiva.
Segue a dúvida, no entanto, sobre até que ponto o sistema político manterá a unidade quando a conversa sobre punição aos responsáveis se tornar mais prática — não só para os anônimos presentes em Brasília, mas chegando a financiadores, lideranças envolvidas e obediência das polícias.
“A política nacional se forjou fazendo acordo político por alguns interesses: ministros de Dom Pedro I eram portugueses, a República só começa a funcionar quando trazem monarquistas, a Nova República precisou de civis que apoiaram o regime autoritário. Só que, desta vez, talvez o sistema tenha tomado uma sacolejada de certa forma inédita, nem em 2013 conseguiram entrar nos palácios”, diz Souza. “Uma linha vai ter de ser traçada, e o tracejar dessa linha dá oportunidade a lideranças de construir novos marcadores para preservar a regra do jogo.”
A questão, para o cientista político, é como principalmente o presidente Lula e seu entorno agirão nesse momento. O governo não poderá derrapar, como fez parcialmente em seu discurso em Araraquara (quando Lula misturou nazistas e stalinistas e voltou atrás, em uma fala que soou improvisada).
“A durabilidade desse consenso vai depender da vontade dos atores envolvidos, mas a base está dada. O presidente Lula vai saber aproveitar isso em seu favor?”, questiona Souza.
Logo após o Capitólio, a leitura majoritária nos EUA era de que Trump estava acabado — o que não aconteceu na prática, com o trumpismo se mostrando resiliente, mesmo que não com a força de antes. O consenso no Brasil é fato, mas, passada a indignação dos primeiros dias, o cenário sempre pode mudar. A disputa está aberta.
(Com reportagem de Alessandra Azevedo, em Brasília, e André Martins, em São Paulo)