Especialistas veem fragilidades em pedido de partido de Bolsonaro contra urnas eletrônicas e apostam em indeferimento

Advogados eleitorais indicam ausência de provas e motivação política em pedido e destacam risco de responsabilização dos autores do pedido

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O pedido apresentado pela Coligação Pelo Bem do Brasil (PL, Republicanos e Progressistas), que apoiou o presidente Jair Bolsonaro (PL) nas últimas eleições, para a realização de uma “verificação extraordinária” dos resultados da disputa ao Palácio do Planalto em segundo turno e a invalidação dos votos registrados em 279,3 mil urnas eletrônicas não deve encontrar eco no Tribunal Superior Eleitoral.

É o que apostam especialistas em Direito Eleitoral, que se manifestaram logo após a apresentação dos documentos e pronunciamento à imprensa convocado pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, presidente nacional do Partido Liberal − sigla que abrigou Bolsonaro no último pleito e que saiu da votação em 2 de outubro com as maiores bancadas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

A contestação do tipo administrativa não é inédita na história da redemocratização brasileira. Em 2014, o então candidato derrotado à presidência Aécio Neves (PSDB) pediu uma auditoria dos resultados que mantiveram no Palácio do Planalto a então presidente Dilma Rousseff (PT).

O procedimento solicitado à época não encontrou nenhuma irregularidade. Em mais de duas décadas de funcionamento das urnas eletrônicas, nenhum questionamento ao sistema eletrônico de votação jamais prosperou no país, mas ataques sem provas voltaram a ganhar força sob o governo de Bolsonaro.

O andamento ou não da representação bolsonarista depende do TSE. Formado por sete ministros efetivos − três são provenientes do Supremo Tribunal Federal (STF), dois vêm do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois são juristas vindos da advocacia −, a corte eleitoral é atualmente presidida por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo.

Especialistas frisam que petições consideradas de má-fé podem resultar na punição de quem as promoveu − inclusive com inegibilidade. Por isso, Valdemar Costa Neto procurou reiteradas vezes dizer que não estava contestando o resultado das eleições e que o objetivo de seu partido era “contribuir com a democracia” a partir do aperfeiçoamento do sistema.

O representante do Partido Liberal também se escorou em orientação da Justiça Eleitoral para justificar o movimento ao lembrar que o próprio TSE conferiu aos partidos políticos a “incumbência” de fiscalizar o processo eleitoral.

O caminho para se contestar o resultado das eleições é apresentar eventuais provas de fraudes e formalizar um pedido ao tribunal.

No caso da representação movida pela chapa de Bolsonaro na terça-feira (23), a alegação é que houve um suposto mau funcionamento de alguns modelos de urnas eletrônicas no segundo turno que deram equivocadamente a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

 

O PL alega ter havido “desconformidades irreparáveis de mau funcionamento” nos modelos de 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015 dos equipamentos. Representantes da empresa Instituto Voto Legal, contratada pelo partido para o trabalho de auditoria, dizem ter identificado falha na “individualização” de arquivos Log de urna, usados na identificação de equipamentos no pleito eleitoral e atividades das urnas.

Segundo eles, somente os equipamentos de 2020, que correspondem a 192 mil de 472 mil urnas utilizadas, teriam o campo corretamente preenchido. Nas demais, eles alegam que não haveria como “assegurar a vinculação entre as informações lançadas (…) e as intervenções realizadas em cada uma dessas urnas, conferindo certeza da autenticidade do resultado da votação”.

Entenda o pedido apresentado pelo partido de Bolsonaro

O consultor em eleições digitais, Giuseppe Janino, um dos criadores da urna eletrônica brasileira, disse que o arquivo de log − usado como base para a petição ao TSE − “nada tem a ver com o núcleo do ecossistema da urna eletrônica”.

Segundo ele, não há qualquer interferência no que diz respeito ao recebimento do voto, ao registro do voto ou à apuração dos resultados.

“O log é um mecanismo de auditoria, dentre os vários outros que a urna eletrônica tem. Ele faz um registro de todas as operações que ocorrem na urna eletrônica, desde o momento que ela é carregada até o momento que ela é desligada”, disse, ao comparar ele a uma caixa preta do avião, um “arquivo satélite que simplesmente registra os eventos que acontecem na urna eletrônica”, disse à Reuters.

“Portanto, se o log falhar, o que certamente não foi o caso, não interferiria em absolutamente nada no funcionamento do recebimento do voto e sua apuração”, destacou ele, que foi durante anos secretário de Tecnologia da Informação do TSE.

Segundo Janino, a urna não depende, em termos de auditoria, exclusivamente do log. “Tais argumentos levantados neste momento nada mais são do que novas tentativas de descredibilizar a urna eletrônica e o processo digital de eleição. O mesmo processo que vem elegendo os governantes de nosso país há 26 anos, contribuindo com a democracia”, disse ele.

Especialistas em Direito Eleitoral também veem fragilidade na argumentação apresentada pelo PL para sustentar um pedido drástico de anulação de mais da metade dos votos registrados no segundo turno da disputa pelo Palácio do Planalto.

“Não há qualquer fundamento na representação. O arquivo de log não precisa ter número próprio de identificação, basta que a urna tenha, como tem. O fato de que as urnas mais modernas incluíram novos mecanismos de segurança não torna as urnas antigas inseguras”, argumenta o advogado Fernando Neisser, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) e da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP).

“O PL e Bolsonaro valem-se de uma falácia. Buscaram algum argumento que justificasse anular urnas de modo a que as que sobrassem o tornassem vencedor. O intuito obviamente é dar fôlego às manifestações antidemocráticas e manter o clima de irracionalidade que temos visto”, avalia.

Visão similar tem o advogado Cristiano Vilela, membro da Confederação Americana dos Organismos Eleitorais Subnacionais (CAOESTE/Transparencia Electoral, em espanhol). “O pedido feito pelo PL carece de fundamentação técnica e jurídica”, afirma.

“Se, de um lado, é verdade que cabe a qualquer participante que encontre elementos capazes de macular o processo eleitoral, apresentá-los e cobrar providências; de outro, os elementos trazidos são muito fracos e não são capazes de colocar em xeque a fidedignidade do processo eleitoral”, continua o especialista, que foi observador nas eleições gerais do Chile, em 2021, e da Colômbia, em 2022, representando organismos internacionais de fiscalizações.

Já o advogado Guilherme Amorim Campos da Silva, sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados, lembra que a sigla de Bolsonaro utilizou expediente previsto em resolução do Tribunal Superior Eleitoral para questionar os resultados das urnas, mas não apresentou fatos, indícios ou circunstâncias que amparassem tal ação.

“Bolsonaro joga para seus apoiadores e quer justificar, sem fundamento, tentativa de golpe de Estado no Brasil”, afirma o especialista. “O destino do seu pedido é, com toda certeza, o indeferimento liminar”.

Os especialistas lembram que, em seu despacho inicial, o presidente do tribunal eleitoral, ministro Alexandre de Moraes, determinou que, em 24 horas, a coligação de Bolsonaro apresente um relatório completo sobre as eleições. O magistrado destacou que, embora a contestação se limite ao segundo turno, as urnas também foram usadas no primeiro turno − quando o PL conseguiu eleger a maior bancada na Câmara dos Deputados, com 99 representantes.

“Espera-se que o TSE arquive liminarmente a representação e determine a apuração da responsabilidade de seus autores, pelo deliberado ataque ao sistema democrático”, afirma Neisser.

Caminhos para a contestação

Por meio da via administrativa, é possível requerer ao tribunal que faça uma auditoria em relação à contagem dos votos. Trata-se de um procedimento administrativo que tem como objetivo discutir a ocorrência de irregularidades no pleito eleitoral, tal como eventual falha na contagem dos votos.

Cabe ao interessado expor à Justiça Eleitoral as irregularidades levantadas, sempre de maneira fundamentada e com a devida comprovação de seus indícios. Além disso, os custos com a realização da auditoria devem ser arcados pelo interessado.

“Esse procedimento foi utilizado em 2014, quando o então candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) questionou os votos obtidos pela presidente Dilma Rousseff (PT)”, destacou Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama e pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos.

Na época, o PSDB alegou que havia denúncias e desconfianças sobre o sistema na internet e nas redes sociais. Após a realização da auditoria, feita pelo próprio partido, o TSE informou que o documento confirmava que não havia sido verificada nenhuma evidência de adulteração de programas, de votos ou mesmo qualquer indício de violação ao sigilo do voto no pleito em questão.

Já na esfera judicial, há a possibilidade de mover ações de impugnação do mandato eletivo (Aime) e de investigação judicial eleitoral (Aije).

A primeira delas, segundo Caldas, é a mais utilizada quando candidatos entendem que o adversário cometeu abuso de poder econômico, corrupção ou teria havido fraude nas eleições.

Esse tipo de ação, previsto na Constituição Federal, tem de ser proposta em até 15 dias após a diplomação do candidato vitorioso. A diplomação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai ocorrer até o dia 19 de dezembro.

A Aije, por sua vez, é prevista na Lei Complementar 64, de 1990 (Inelegibilidades), tem que ser apresentada até a data da diplomação e tem objetivo semelhante a Aime − ou seja, apurar eventuais abusos de poder.

Os dois tipos de ações podem levar à inelegibilidade do candidato e à perda do mandato, caso sejam julgadas procedentes.

“Importante ressaltar que as hipóteses de contestação devem estar fundadas em circunstâncias robustas e devem ser acompanhadas de provas sólidas sobre a irregularidade levantada. Além disso, há de ser examinada a consequência desta contestação para o resultado final das eleições. São questões que devem ser avaliadas conforme o caso concreto e com a devida cautela”, disse Costódio Rodrigues, especialista em Direito Administrativo.

Julgamento

Rodrigues lembra ainda que, nos casos que envolvem candidatos à Presidência da República, tanto o processo administrativo quanto as ações judiciais são julgadas pelo plenário da corte eleitoral.

Isso vale tanto para, por exemplo, a admissibilidade de um pedido de auditoria quanto o julgamento após a realização das diligências para instrução do caso, acrescentou.

O partido ou coligação que tenha recolhido provas sobre fraudes tem de apresentá-las ao TSE. O tribunal avaliará se a documentação tem o mínimo de lastro para abrir uma apuração e, ao final da investigação, a instância avalia se há ou não procedência no pedido.

Caldas alerta para o fato de que, conforme a Constituição, uma ação para impugnar uma pessoa eleita sabendo que ela foi proposta de forma temerária e de má-fé − sem qualquer lastro de provas, por exemplo − pode levar à responsabilização do autor do processo.

Para o coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Luiz Fernando Pereira, se Bolsonaro e aliados atacarem as urnas a partir de dados sabidamente inverídicos, o TSE deve impor uma pena de inelegibilidade de oito anos.

Pereira disse que isso é uma novidade desse processo eleitoral e decorre da decisão do tribunal de cassar, em outubro do ano passado, o mandato do deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini (então no PSL), aliado de Bolsonaro, por ter disseminado notícias falsas sobre a integridade das urnas eletrônicas. O TSE condenou o parlamentar por uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político e de autoridade, tornando-o inelegível.

Segundo o especialista, após a decisão sobre Francischini, a corte eleitoral alterou um artigo de uma resolução para dispor a possibilidade de inelegibilidade por oito anos, inclusive com a cassação do mandato.

“É vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos, devendo o juízo eleitoral, a requerimento do Ministério Público, determinar a cessação do ilícito, sem prejuízo da apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação”, diz o artigo 9º-A, da resolução 23.671 do TSE.

(com Reuters)

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