Luís Felipe Miguel: para reconstruir a democracia, esquerda não pode apagar golpe de Estado de 2016
'Ou nos preparamos para o confronto ou o voo será sempre de galinha', diz cientista político, defendendo que novo governo progressista ataque privilégios estruturais
Por Pedro Alexandre Sanches, do Opera Mundi – O cientista político Luís Felipe Miguel, em entrevista ao jornalista Breno Altman no programa 20 MINUTOS desta quarta-feira (17/08), defendeu que um novo governo de esquerda não terá êxito se evitar o confronto com as classes dominantes e não atacar de modo profundo os privilégios e as desigualdades no Brasil.
Para ele, as políticas dos governos petistas privilegiaram não um reformismo fraco, como batizou o cientista político André Singer, mas um reformismo superficial, que mexia nas consequências sem atacar suas estruturas da desigualdade social.
“Não adianta, porque acaba mexendo lá e o confronto acaba acontecendo. Ou a gente se prepara para o confronto ou o voo será sempre de galinha”, comentou.
As soluções reformistas, na avaliação do professor da UNB, não tiveram o poder de evitar o embate com o grande capital. “Buscaram-se fazer mudanças que impactavam a vida dos mais pobres, que não tocariam nos privilégios da classe dominante para que ela não fizesse uma oposição muito forte. Mas essas mudanças desencadearam uma dinâmica de transformação social que fatalmente mexeu nesses privilégios”, interpreta.
Ele cita um exemplo do barril de pólvora escondido mesmo embaixo das atitudes supostamente conciliatórias dos governos petistas: “Uma medida importantíssima para entender tanto as potencialidades quanto os limites e o debacle dos governos petistas foi a PEC das domésticas. Conquistam-se direitos trabalhistas básicos, um avanço civilizacional gigantesco, e burguesia e classe média que se beneficiam da extrema desigualdade do país reagem porque estão perdendo o acesso à mão de obra a preço vil”.
Autor do livro recém-lançado Democracia na Periferia Capitalista – Impasses do Brasil (Autêntica), Miguel defende que os retrocessos políticos e sociais dos últimos anos encurtaram o horizonte da esquerda brasileira, a ponto de que hoje há quem pretenda simplesmente o retorno ao pré-bolsonarismo e o apagamento do golpe de Estado de 2016 e seus significados.
“Que tipo de reconstrução democrática estaremos fazendo se os responsáveis pela fratura do elemento mais básico da nossa democracia, o respeito aos resultados eleitorais, forem perdoados e reincorporados sem nenhuma necessidade de autocrítica?”, pergunta. “É uma solução de curtíssimo prazo, que acaba enfraquecendo nossa possibilidade de uma reconstrução democrática mais sólida e segura”, acrescenta.
Em seu diagnóstico, a esquerda brasileira deve parar de ter medo de colocar na rua um projeto de transformação social radical. “Precisamos poder falar do mundo que queremos sem ter vergonha. Chegamos numa situação em que a direita foi capaz de transformar a palavra socialismo num palavrão”, protesta. “As pancadas que sofremos nos últimos tempos foram tão fortes que a esquerda está cada vez menos esquerda. O projeto de transformação social é cada vez mais epidérmico.”
O professor da UNB aponta uma cautela excessiva do hoje candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva ao recuperar seus direitos políticos, quando ficou exposta a conspiração que o impediu de concorrer à presidência em 2018.
Diante do desastre do governo Bolsonaro, argumenta, Lula acumulou força que lhe daria condições de negociar apoios em posição mais vantajosa. “Houve uma opção excessivamente retrancada para aceitar uma composição que rebaixa nosso programa ao mínimo do mínimo, por não entender a possibilidade de negociar inclusive vários desses acordos, mas numa posição mais vantajosa”, critica. “Parece que existe um complexo de inferioridade que faz com que nós da esquerda estejamos sempre prontos a ceder tudo para ganhar um apoio a mais.”
Miguel sublinha que uma parte significativa dos hoje signatários de manifestos de defesa do Estado democrático de direito é co-responsável pelos retrocessos de 2016 para cá. “A democracia brasileira não começou a ser golpeada com Bolsonaro”, afirma, citando a deposição de Dilma Rousseff e a voracidade neoliberal de Michel Temer.
“Alexandre de Moraes, que hoje é saudado como grande guardião da democracia brasileira, foi um partícipe importante da desconstrução da democracia tal como balizada pela Constituição de 1988.”
O deslocamento do foco político da esquerda para o embate eleitoral e a negociação com o capital não garantiu estabilidade aos governos petistas e não o fará num eventual retorno ao poder, na opinião do cientista político.
“Achávamos que estava garantido o básico, que eram as liberdades democráticas e a democracia eleitoral, e não estava. Quando deram golpe, cadê a capacidade de resistência que a gente tinha? O campo popular foi capaz de mostrar muito pouco, quase nada nas ruas”, avalia.
Em suas palavras, a base popular petista acomodou-se a expressar apenas pelo voto e se tornou dependente exclusivamente das instituições, que se mostraram indignas de confiança: “Quando os grupos dominantes acham que está na hora de dar uma virada de mesa, o Congresso, o judiciário e o quarto poder que é nossa imprensa corporativa estão todos do mesmo lado.”
Ao privilegiar a estratégia eleitoral, a esquerda se torna necessariamente mais moderada, e essa moderação diz mais respeito a pressões da direita que da esquerda, que por sua vez não apresenta alternativas factíveis ao projeto petista: “Lula se tornou o candidato único da esquerda, e a lógica que impera é que é necessário abraçar Alckmin, o agronegócio, o sistema financeiro, a fim de dar a essa candidatura o caráter mais amplo possível, o que tem impacto no programa político e na capacidade de tensionar a sociedade”.
Luís Felipe Miguel adverte para a instabilidade inescapável das soluções conciliatórias: “Os realistas dizem que se tivesse tentado mais não teria durado, mas a verdade é que não durou se tentando tão pouco. Não precisou de meia dúzia de anos para que voltássemos à insegurança alimentar e à situação de fome de antes. Aprovaram o teto de gastos, Bolsonaro desmontou tudo numa canetada e recuamos rapidamente dez ou 15 anos na construção já precária de Estado social no Brasil”.
Como mecanismos práticos para superar instabilidades dessa natureza, a solução seria o estreitamento dos laços entre os políticos em mandato e o eleitorado, por meio de medidas revogatórias de caráter plebiscitário e formas obrigatórias de prestação de contas não apenas na campanha eleitoral, mas de forma permanente.
“Ao reduzir a distância entre representante e representado, você torna o representante menos vulnerável às pressões dos poderosos”, preconiza.