Dos EUA ao Brasil, por que risco de estagflação voltou ao debate no mundo
A economia global pode estar distante da estagflação dos anos 1970. Mas da pandemia ao petróleo, a guerra na Ucrânia surge em um momento dos mais delicados
Mais um dia, mais uma revisão de inflação para cima.
Essa tem sido a rotina em 2022. A situação inflacionária no mundo já vinha instável com variantes da covid-19 e gargalos na cadeia de suprimentos. Mas a guerra na Ucrânia faz ressurgir com força o debate sobre a chamada “estagflação” — termo que descreve um cenário de inflação alta e sem crescimento.
O risco é unir o pior dos dois mundos. Primeiro, as altas históricas no preço do petróleo e outras commodities chegam a uma economia global que enfrentava mesmo antes da guerra inflação anormalmente alta. Isso ocorre nos países desenvolvidos e de forma ainda mais acentuada nos emergentes (caso do Brasil, que fechou 2021 com inflação em 10,06%, uma das maiores desde a criação do Plano Real).
E do outro lado, choques de oferta em setores como o de energia podem frear a retomada que apenas começava a acontecer, após uma pandemia que matou 6 milhões de pessoas. Enquanto isso, as altas de juros esperadas para conter a inflação devem inevitavelmente desacelerar a atividade econômica.
“A guerra entrou para complicar um contexto que já tinha muita incerteza e riscos, no Brasil e no mundo”, diz a economista Margarida Gutierrez, professora do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ).
Juros nas alturas
O debate já acontecia, aqui e ali, há alguns meses. Mas a resposta na ponta da língua, como a EXAME mostrou em outubro passado, era mais previsível: com economias avançadas tendo juros muito baixos, bastaria subir um pouco as taxas e a inflação ficaria controlada sem choques muito profundos.
Assim, altas nos juros já eram esperadas para 2022 nas economias desenvolvidas. E no Brasil, onde o Banco Central havia levado a Selic de 2% a mais de 10% em um ano, o plano era começar a encerrar o ciclo de aumentos, ao mesmo tempo em que esperava-se que a inflação cairia pela metade, de 10% para a casa dos 5%.
Até que uma guerra surgiu no meio do caminho.
A grande dúvida agora — que o jornal britânico Financial Times chamou de um “desagradável dilema” — é se os bancos centrais terão de subir juros de forma muito mais acentuada do que o previsto. O conflito na Ucrânia já passa de 20 dias, sem um cessar-fogo duradouro à vista.
Uma das primeiras respostas virá ainda nesta quarta-feira, 16, quando o Fed, o Banco Central americano, deve aumentar a taxa há anos zerada entre zero e 0,25%.
Analistas esperam outros seis ou sete aumentos, chegando à casa dos 2,5% e até 3% em 2023 nas projeções.
A inflação americana em janeiro e fevereiro superou 8%, a maior em quarenta anos — que não se via desde o fim, inclusive, da chamada “Grande Inflação” nos anos 1970, um período clássico de estagflação.
Em março, os números devem piorar ainda mais, com a gasolina batendo recordes, quase a US$ 5 o galão.
As cenas de filas nos postos americanos vistas nos últimos dias são quase nostálgicas da estagflação dos anos 1970. O mesmo aconteceu no Brasil, após a Petrobras anunciar aumento de 19% na gasolina e 25% no diesel, depois de 57 dias tentando segurar as altas.
O uso da definição de estagflação, no entanto, é polêmico entre economistas para descrever os riscos do cenário atual. “Não avalio que o termo é apropriado neste momento, nem aqui nem no mundo”, diz Alexandre de Ázara, do banco suíço UBS.
O economista aponta que a projeção de crescimento do PIB brasileiro, por exemplo, tem sido revisada para cima, perto de 0,5%, o que não indica um cenário de recessão à vista.
“O que temos é um choque inflacionário, ponto. Houve um grande choque global de alimentos e energia, e com essa nova alta de commodities, temos mais um choque inflacionário em cima do anterior. Nossa visão é que isso vai exigir uma resposta de política monetária”, diz.
Para o Brasil, Ázara defende altas mais bruscas do Copom na Selic neste momento, como dois aumentos de 1,5 ponto nas próximas reuniões (em vez de três aumentos de um ponto, uma opção mais amena).
É o petróleo, estúpido
Como hoje, a gota d’água na estagflação dos anos 1970 foi o petróleo, com as guerras no Oriente Médio e o posterior embargo dos países produtores da região contra os EUA por seu apoio a Israel. Com os choques, deu-se uma crise de oferta global e o preço do barril disparou.
Desta vez, o risco é novamente uma disrupção nas cadeias de energia, uma vez que a Rússia é o terceiro maior produtor de petróleo e líquidos do mundo. O país foi proibido de vender petróleo e gás aos EUA, por exemplo, e outras sanções também vêm impedindo investimentos em energia russa.
A situação na Europa é especialmente delicada porque a Rússia fornece 40% do gás da União Europeia, mais de um terço do petróleo e metade do carvão. Além de aumentar o custo de vida da população, os preços altos impactarão a indústria de forma ampla, um sinal vermelho para o crescimento. Enquanto isso, a inflação na zona do euro supera os 5% e deve passar de 6% ou mais com a guerra.
Mas há uma série de argumentos que analistas têm usado para apostar que o risco atual não deve chegar ao ápice da estagflação clássica. Um dos principais é que bancos centrais teriam aprendido a lição e vão subir juros e praticar política monetária mais contracionista antes de a inflação sair do controle, ou o fato de a economia ser hoje menos dependente de petróleo de uma só região.
Brasil e EUA, por exemplo, não estavam entre os maiores produtores nos anos 1970, mas viram suas produções alavancarem nas últimas décadas, com o pré-sal brasileiro e o gás de xisto americano.
Essa diferença, diz Gutierrez, da UFRJ, é crucial para que o risco de estagflação hoje seja menor, assim como os juros baixos pelo mundo. “Hoje, nos EUA, por exemplo, há mais ‘gordura para queimar’ e espaço para subir juros. Há riscos, mas não se compara ainda ao que foi nos anos 1970”, diz a economista.
Outro dos fatores que desencadearam a crise foram amplos custos dos governos americanos com a guerra no Vietnã e — dos necessários aos eleitoreiros — gastos sociais nos governos Johnson e Nixon. Nixon terminaria controlando preços, desvalorizando o dólar e forçando o Fed a abaixar juros antes de a crise estourar, o que se provou um erro.
Esses gastos têm sido, no limite, comparados com os da pandemia na lista de riscos. Mas nos EUA, os juros chegaram a beirar os 20% nos anos 1970, e mesmo assim, com inflação acima de 10%, cenário por ora inimaginável hoje.
O desafio em dobro no Brasil
No Brasil, a estagflação dos anos 1970 trouxe ainda seu caos particular, com os problemas estruturais do “milagre econômico” na ditadura militar aparecendo de vez, como o alto endividamento em dólar. Naquela época, a inflação chegava a 20%, mas iria para perto dos 100% até o final da década mesmo com juros altos (levando à subsequente década perdida dos anos 1980).
Agora, o país tem reservas em dólar e uma economia e dívida mais estabilizadas. Um dos desafios, porém, é que os choques globais chegam em momento especialmente delicado, lembra André Biancarelli, diretor do Instituto de Economia da Unicamp.
“Temos uma economia que há cinco, seis anos, está carente de motores de crescimento, a recuperação tem sido muito anêmica, esse é um problema que permanece. E com a guerra, adicionam-se a isso muitas camadas de incerteza”, diz Biancarelli, que aponta que o mundo tem visto um “nível de inflação latino-americana, mas em economias desenvolvidas”.
Para o cenário de inflação do Brasil, o desemprego tem caído, mas não se compara aos cenários folclóricos de EUA e Europa, com funcionários pedindo demissão ou barganhando aumentos em meio ao grande número de vagas abertas.
Por aqui, a massa de rendimento medida pelo IBGE inclusive diminuiu, o que indica que muitos brasileiros têm aceitado empregos informais ou com salário inferior, tornando a inflação especialmente trágica. Na última vez que houve inflação acima de 10%, em 2015, o desemprego era também menor.
A inflação que se viu em 2021 foi sobretudo de oferta, o que é preocupação para 2022 e 2023 se houver altas em demanda. Para Ázara, do UBS, é importante que o BC não “deixe as expectativas deteriorarem”.
Como sempre é um risco para economias emergentes, um aumento brusco nos juros nos EUA e Europa também levaria a uma desvalorização do real, com mais inflação. A alta das commodities, entre outros fatores, levou ao “rali” do real nas últimas semanas, mas a situação pode mudar em um piscar de olhos, somada também a riscos fiscais e incerteza eleitoral no Brasil em 2022.
Após a Petrobras aumentar os preços dos combustíveis, o boletim Focus desta semana já trouxe a projeção de inflação para 2022 em quase um ponto percentual maior, a 6,45% (após ter começado o ano em 5%).
“Para o Brasil, não vejo que as commodities, sozinhas, podem dar conta”, diz Biancarelli, da Unicamp.
“Ainda que o Brasil não seja diretamente afetado pela guerra — com exceção dos fertilizantes —, minha visão é que o saldo em 2022 até agora é muito mais negativo do que positivo.”
Por outro lado, chegar verdadeiramente a uma “estagflação” significaria que o Brasil e o mundo, no pior dos cenários, poderiam ver retração no crescimento e aumento do desemprego ao mesmo tempo em que os preços sobem descontroladamente. Isso ainda não é um fato.
O Fundo Monetário Internacional foi categórico neste mês ao afirmar que a Rússia, sim, pode estar a dias de um calote na dívida, mas que isso não deve levar a uma crise financeira global. A aposta por ora é que o mundo em 2022 é muito diferente do que era em 1970, e que haverá desaceleração, embora não um completo descontrole como há 50 anos.
As incertezas, ainda assim, estão longe de acabar. E os reflexos para os cidadãos em todo o mundo, principalmente os mais pobres, seguirão sendo uma infeliz realidade que governos terão de trabalhar para amenizar.