O que a guerra na Ucrânia tem a ver com as mudanças climáticas
O atual conflito confirma o que diz o relatório do IPCC: seja qual for a desordem que os seres humanos decidirem infligir ao mundo, as mudanças climáticas vão torná-la ainda pior
Na segunda-feira, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) divulgou a segunda parte de um amplo relatório sobre os impactos irreversíveis que as mudanças climáticas já estão tendo no mundo. Mas, em meio ao desespero e à urgência da guerra, dificilmente suas conclusões vão ter a atenção que merecem.
Esse relatório “fora de hora” vai acabar provando, porém, algo que é fundamental para entender o futuro do planeta: seja qual for a desordem que os seres humanos decidirem infligir ao mundo, as mudanças climáticas vão reduzir as possibilidades de conseguirem resolver bem o problema, avalia o site Politico.
É fácil ver que a guerra na Ucrânia está ligada ao clima de muitas maneiras. O agressor é um estado baseado no petróleo, cujo futuro econômico depende de que o mundo continue com suas emissões de carbono, sem restrições. Da mesma maneira, a dependência europeia do petróleo e do gás da Rússia está por trás de conversas sobre como acelerar a adoção de energias limpas.
A Ucrânia é um importante fornecedor de grãos e milho para o planeta. Por isso, a invasão russa pode criar uma escassez de alimentos que irá acentuar ainda mais a fome em certos países da África, que já sofrem por causa de secas e falta de acesso a água potável.
Um exemplo menor e mais humano. Os cientistas ucranianos que fazem parte do painel tiveram que parar de trabalhar na versão final do relatório, enquanto procuraram abrigo contra os mísseis russos. Enquanto isso, os delegados russos puderam continuar seus esforços para salientar os benefícios do aquecimento global. Um representante russo, porém, usou o encontro para se desculpar pela agressão do seu governo.
Efeitos do desgoverno
Essa interconectividade está no coração das últimas conclusões do IPCC, e vai contra o pensamento tradicional sobre mudanças climáticas, disse um dos autores no painel, François Gemenne.
“Ainda existe uma tendência, entre governantes e políticos, de considerar o clima como um dos riscos entre muitos outros”, disse. “Em vez disso, deveríamos considerar as mudanças climáticas como uma matriz de riscos, e entender que todas as questões-chave do século 21 – em temas como desenvolvimento econômico, segurança, migração e saúde – serão transformadas por essa matriz.”
O relatório identifica muitas vezes o desgoverno de certos países como um fator de risco para o mundo. À medida em que entramos na era das consequências climáticas, diz o relatório, governos que não contam com estruturas institucionais, desejo político e responsabilidade em relação a seus cidadãos não conseguirão protegê-los do impacto da crise climática.
E esse é um problema que o presidente russo Vladimir Putin vai ter que enfrentar, no meio de muitos outros. No norte da Rússia, o derretimento do permafrost (camada de gelo permanente no subsolo) foi o responsável por um dos maiores desastres climáticos do passado recente.
Em 2020, durante uma onda de calor, o derretimento do gelo fez com que um tanque se rompesse, derramando cerca de 30 mil toneladas de óleo diesel nos rios e lagos perto de Norilsk, uma cidade de 175 mil habitantes construída sobre esse gelo. Até 2050, a estimativa é que o solo da região não seja mais capaz de suportar nenhuma estrutura. Os danos podem custar ao governo US$ 132 bilhões.
Então, como a Rússia vai responder? Resolver esses problemas requer dinheiro, planejamento e mudança de prioridades. Quando não há nada disso, os riscos para a população se elevam, dizem os cientistas.
“A mudança climática é um multiplicador de ameaças”, diz Katharine Hayhoe, cientista-chefe da Nature Conservancy. “Pegue qualquer coisa que sabemos estar errada com o mundo hoje, e a emergência climática vai torná-la ainda mais difícil de resolver.” E é isso que a guerra na Ucrânia, infelizmente, está ajudando a provar.