Saúde recebeu atravessadores de vacina mesmo depois de acionar PF e AstraZeneca
Documentos da CPI revelam que ministério já havia recebido ofertas falsas antes do caso da Davati
Documentos em posse da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid no Senado mostram que o Ministério da Saúde acionou a Polícia Federal e a AstraZeneca a respeito de ofertas suspeitas de vacinas em 29 de janeiro, semanas antes de negociar milhões de doses de imunizantes com a Davati Medical Supply e a associação Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários). Os atravessadores jamais tiveram autorização das farmacêuticas para negociar vacinas em seu nome. Também não tiveram acesso a nenhuma dose.
Ofícios revelam que, em 29 de janeiro, o chefe de gabinete da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, Paulo Marcos Castro Rodopiano de Oliveira, encaminhou ao então diretor-geral da PF, Rolando Alexandre de Souza, uma notícia de fato sobre os contatos que a pasta havia recebido de “cidadãos, que se apresentam como supostos representantes de laboratórios internacionais, com propostas de venda de vacinas contra covid-19”.
Na mesma data, a diretora de Assuntos Regulatórios da AstraZeneca no Brasil, Alessandra Nicoli Hengles, enviou um e-mail para a diretora adjunta da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Daniela Marreco Cerqueira, com cópia para o gabinete da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde. Eis a íntegra (63KB).
Hengles diz na mensagem ter recebido uma comunicação da Secretaria Executiva da pasta perguntando se era verdade que a empresa Biomedic, com sede em Vila Velha (ES), e uma outra empresa chamada Virality Diagnostic teriam autorização para vender, respectivamente, 300 milhões e 50 milhões de doses da vacina da AstraZeneca contra a covid-19.
“Conforme mencionado anteriormente para essa Diretoria em outra denúncia, em virtude do compromisso humanitário externado pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, toda a produção da vacina AZD 1222 durante o período de Pandemia é destinado exclusivamente a governos e organizações internacionais de saúde ao redor do mundo, ou seja, não há possibilidade de comercialização da vacina produzida pela AstraZeneca no mercado privado”, afirma a executiva no e-mail.
No material que o ministério anexou à notícia de fato encaminhada para a Polícia Federal há uma troca de mensagens entre Elcio Franco e um contato com número com prefixo do Espírito Santo, também em 29 de janeiro.
O interlocutor apresenta na conversa um documento que alega ter sido emitido pela AstraZeneca para confirmar a disponibilidade de centenas de milhões de doses da vacina para pronta entrega ao Brasil e pergunta se Franco “ainda tem interesse” no negócio. “Claro que sim”, responde o então secretário executivo. Eis a íntegra do material.
Mesmo depois de acionar a PF e ouvir da AstraZeneca ainda no fim de janeiro que a fabricante só negociava a vacina diretamente com governos nacionais, Franco teria se reunido em 12 de março com o presidente da Senah, reverendo Amilton Gomes de Paula, e os vendedores autônomos atuando em nome da Davati Medical Supply Cristiano Alberto Hossri Carvalho e Luiz Paulo Dominghetti Pereira, que é cabo da PM de Minas. O encontro teria sido intermediado pelo tenente-coronel da reserva do Exército Hélcio Bruno de Almeida, líder da organização conservadora Instituto Força Brasil.
Dominghetti e Gomes de Paula já haviam sido recebidos em fevereiro pelo então diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Laurício Monteiro Cruz. Juntos, encaminharam diferentes propostas à pasta oferecendo, em nome da Davati, 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca e 200 milhões de doses do imunizante da Janssen.
O reverendo foi convocado para depor à CPI da Covid em julho, mas apresentou atestado médico sobre problemas renais que o impediram de comparecer. O presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), deve marcar sua oitiva já na semana que vem, quando o colegiado retoma os trabalhos depois do recesso congressual.
Dominghetti também se reuniu com o então diretor do Departamento de Logística da pasta, Roberto Ferreira Dias, em 26 de fevereiro. O cabo da PM afirmou à CPI da Covid que, na noite anterior, ouviu de Dias pedido de propina de US$ 1 por cada dose ofertada em nome da Davati. O ex-diretor de Logística e seu ex-assessor no ministério, coronel Marcelo Blanco da Costa, que também estava presente no jantar em Brasília em 25 de fevereiro, negam a acusação.
O Poder360 perguntou ao Ministério da Saúde por que gestores da pasta seguiram negociando com atravessadores sem autorização das fabricantes de vacinas contra a covid-19 mesmo depois de ter acionado a PF para coibir exatamente a mesma prática. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Operação Taipan
Em 25 de março deste ano, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em Minas Gerais e no Espírito Santo para investigar um grupo que havia feito ofertas fraudulentas de 200 milhões de vacinas contra a covid-19 ao Ministério da Saúde.
Um dos alvos foi o empresário Christian Pinto Faria, então sócio da Biomedic –uma das empresas que a executiva da AstraZeneca apontou estar negociando ilegalmente com o governo federal como se tivesse acesso a doses de seu imunizante.
Residente em Cariacica (ES), Faria era, possivelmente, o interlocutor de Elcio Franco na troca de mensagens enviada à PF.
Em seu depoimento à CPI da Covid, em 9 de junho, o ex-secretário executivo da Saúde falou sobre a comunicação à Polícia Federal acerca de ofertas falsas de vacinas anticovid. “Nós solicitamos [investigação] à Polícia Federal – assim como vários outros vendedores que vieram nos procurar, oferecendo quantidades enormes de vacina, 200 milhões, 400 milhões, no momento em que faltava vacina no mundo“, declarou.
Franco não disse à comissão, contudo, que continuou negociando com vendedores autônomos que diziam representar empresas que não são fabricantes de imunizantes mesmo depois de acionar a autoridade policial.