ONU quer ‘justiça de reparação’ contra legado da escravidão e racismo sistêmico
A ONU defendeu nesta segunda-feira (12) a ideia de "justiça de reparação" para lidar com o legado da escravidão e do colonialismo, e sua ligação direta e imediata com o racismo sistêmico e a violência policial.
Em um discurso no Conselho de Direitos Humanos (CHR) em Genebra (Suíça), a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pediu o estabelecimento de um mecanismo, com prazo determinado, para fazer avançar a “justiça e igualdade racial”.
Seu pedido foi ouvido por países africanos, que apresentaram também nesta segunda-feira um projeto de resolução sobre a proteção dos direitos e liberdades fundamentais dos afrodescendentes, especialmente diante da violência policial.
O texto, que será discutido essa semana, propõe a criação de “um mecanismo de especialistas independentes que possam enfocar mais claramente o problema do racismo sistêmico na polícia e no sistema de justiça criminal”, explicou o camaronês Côme Awoumou em nome dos países africanos.
Durante os debates, Bachelet apresentou seu relatório sobre a violência policial contra afrodescendentes, publicado no final de junho, poucos dias após a condenação nos Estados Unidos do policial que matou George Floyd, cujo assassinato desencadeou um movimento de protesto mundial.
“Por trás do racismo sistêmico e da violência racial de hoje está a falta de reconhecimento formal das responsabilidades dos Estados e outros atores que participaram ou lucraram com a escravidão, o tráfico de escravos transatlântico africano e o colonialismo – bem como aqueles que continuam a se beneficiar desse legado”, disse.
Ela também denunciou “a repressão às manifestações contra o racismo em alguns países”, que “deve ser levada em conta em um contexto mais amplo em que as vozes dos afrodescendentes e dos que lutam contra o racismo estão sendo reprimidas”.
“Curando nossas sociedades”
“Diante dessas injustiças profundas e de longo alcance, há uma necessidade urgente de abordar esse legado da escravidão e os sistemas sucessivos de discriminação racial, e de buscar justiça de reparação”, disse Bachelet .
“Para curar nossas sociedades e fazer justiça a esses crimes terríveis, é essencial estabelecer a verdade sobre esses legados e seu impacto hoje, e tomar medidas para enfrentar esses danos por meio de uma ampla gama de soluções”, concluiu.
O apelo da ONU acontece enquanto nos Estados Unidos, a questão da “teoria crítica da raça” é debatida. Este termo define uma linha de pensamento que apareceu nas faculdades de direito norte-americanas no final dos anos 1970 para analisar o racismo como um sistema, com suas leis e sua lógica de poder, e não apenas no nível dos preconceitos individuais.
Bachelet declarou ainda não ter encontrado “um único Estado que tenha levado em conta o passado ou que tenha levado em conta seus impactos na vida dos afrodescendentes hoje”.
“Com humildade e introspecção, afirmamos que a desigualdade racial é um desafio enfrentado por todos os estados, inclusive os Estados Unidos, mas que juntos podemos superá-la”, disse o norte-americano, Ben Moeling, na assembleia do CHR.
A Alta Comissária reiterou seu apelo para o estabelecimento de estatísticas étnicas, uma visão não compartilhada por todos os países.
A esse respeito, um representante francês na ONU em Genebra, Iyad Jaber, destacou que “segmentar a proteção dos direitos humanos por meio da seleção de um determinado grupo seria contrário ao próprio objetivo da igualdade de direitos, elevado desde 1948 à categoria de universal objetivo.
Segundo ele, isso geraria uma “assimetria de direitos entre os indivíduos, levaria ao abandono de certos cidadãos e abriria o caminho para a competição entre grupos”.
A “justiça de reparação”, no entanto, faz uso dessa assimetria para corrigir eventuais desigualdades no tempo histórico, criando sociedades mais justas e melhor adaptadas a seu passado e sua memória.
(Com AFP)