Livro de ex-pastor que Universal tentou censurar nos anos 1990 é relançado

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mário Justino tinha 28 anos quando escreveu, em dois meses, uma autobiografia devastadora sobre sua passagem pela Igreja Universal do Reino de Deus -onde, segundo ele, “sexo, dinheiro e drogas se confundem, no mesmo púlpito, com orações e salmos de Davi”.

Justino tinha pressa. Achava que morreria logo.

Naquele ano, 1993, o mundo também passava por uma pandemia, a de Aids. Ele, um pastor da igreja, era soropositivo. “O mal que eu temia me sobreveio”, lembrou das palavras do bíblico Jó quando recebeu o diagnóstico.

Já consolidado como um dos maiores líderes evangélicos do Brasil, o bispo Edir Macedo teria lhe dito antes de expulsá-lo, conforme Justino reproduz: “Ora, não se faça de imbecil! Você sabe por que tem de ir. Mas vou refrescar sua mente. Você não pode mais ficar com a gente porque tem Aids!”.

O ex-pastor esteve a poucos metros de “estourar-lhe os miolos” quando o viu sair de uma limusine em Nova York, como conta no livro. Viciado em crack e heroína, movia-se por vingança. “Perdi uma boa chance de entrar para a história como o Lee Oswald [o assassino do presidente americano John F. Kennedy] da Igreja Universal.”

Negro, bissexual e pai de dois filhos, nascido em São Gonçalo (RJ) e hoje dono de um “green card” dos EUA, Justino não morreu nem matou.

Aos 56 anos, ele teve sua obra relançada pela Geração Editorial com um novo capítulo final: agora, o desfecho de “Nos Bastidores do Reino” é a íntegra da decisão judicial que derrubou uma liminar concedida à Universal em 1995 para retirar o livro de circulação 22 dias após ele chegar às livrarias.

Publisher da Geração, Luiz Fernando Emediato diz ao jornal Folha de S.Paulo que Edir Macedo “tentou comprar os direitos do livro para engavetar”, primeiro de Justino (que recusou), depois dele (idem). “Me dariam um dinheiro, e eu enrolaria o autor até ele morrer de Aids, não tinha coquetel [para controlar o HIV] na época”, afirma.

Gilberto Nascimento lembra do caso em “O Reino – A História de Edir Macedo e uma Radiografia da Igreja Universal”, publicado em 2019 pela Companhia das Letras.

Emediato disse ter sido procurado pelo lobista Gláucio Schmiegelow, que por sua vez acusou uma executiva da Universal de ser a principal articuladora da tentativa de compra dos direitos autorais do título maldito.

Com o “não” de autor e publisher, a igreja entrou com um pedido de liminar. A Justiça o acatou e mandou recolher o livro. “A mesma juíza demorou dois anos para julgar o mérito. Quando julgou, surpreendentemente liberou [o título] e nos deu ganho de causa”, diz Emediato. “Mas aí o interesse pelo livro havia desaparecido.”

Reapareceu depois de uma proposta feita em 2020 para levar a história de Justino ao cinema, com produção de Nilson Rodrigues, ex-diretor da Ancine (Agência Nacional do Cinema). A ideia é convidar José Henrique Belmonte (“Carcereiros”) para dirigir o filme, diz o produtor.

Não surpreende que a Universal tenha desejado o sumiço das páginas preenchidas pelo ex-membro que diz ter tido com outro pastor da casa sua primeira relação homossexual.

É um retrato pouco lisonjeiro. Pior: foi lançado no mesmo ano em que um bispo da Universal desferiu pontapés numa estátua de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, que descreveu como “um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado” -evangélicos não cultuam santos.

Conhecido como “chute na santa”, o episódio dominou o noticiário de um Brasil ainda predominantemente católico e chegou a motivar ataques a templos da Universal.

Um mês depois, o relato de Justino foi publicado. A certa altura, ele diz que atos de alguns colegas pastores o levaram a descobrir que a igreja “nada mais era do que uma empresa com fins lucrativos como qualquer outra na ciranda financeira”.

A única diferença, segundo o autor, “era o produto vendido: sal que tira vício, lencinhos molhados no ‘vinho curativo’ -o conhecido Ki-Suco-, água da Embasa, que dizíamos ter vindo do rio Jordão, azeite Gallo, que dávamos ao povo como legítimo óleo ungido proveniente de Jerusalém, e uma longa lista de outros produtos tão falsos quanto as gotas de leite extraídas dos seios da Virgem Maria, que eram vendidas na Europa nos primeiros séculos, aos otários em busca de milagre”.

Na nova edição, Justino afirma que seu depoimento “acabou por revelar ao público, a partir de um olhar de dentro, os primeiros 14 anos de existência de um dos grandes fenômenos do Brasil contemporâneo: o império religioso erguido por Edir Macedo, e sua posterior transformação em poder midiático e força política abrangente no país”.

Procurada pela reportagem, a Universal, por meio de seu departamento de comunicação, disse que não se manifestará, “pois não teve acesso a esta nova edição da obra e tampouco recebeu qualquer notificação da decisão judicial que, supostamente, teria liberado sua publicação”.

À reportagem Justino traça paralelos entre seus tempos pastorais e os atuais, sobretudo o embate entre pastores brasileiros e angolanos nos templos da Universal abertos no país africano. Autoridades locais denunciaram quatro integrantes da igreja por crimes como lavagem de dinheiro, todos negados pela cúpula brasileira.

Para o ex-pastor, as reclamações dos pastores angolanos assemelham-se a fatos que ele mencionou 27 anos atrás.

“No livro eu falo do grupo de pastores ‘notáveis’ que recebiam tratamento diferenciado como recompensa pela habilidade de arrecadar grandes somas de dinheiro. Eles ganhavam bons carros, bons salários, viagens para Israel, apresentavam os programas de televisão, e isso causava ressentimento nos pastores de periferia que não conseguiam levantar a mesma quantidade de ofertas para terem direito a essas benesses. Na minha época, os notáveis geralmente eram cariocas. Em Angola, eram os brasileiros.”

Um dos investigados na África é o bispo Honorilton Gonçalves, ex-representante máximo da Universal em Angola e ex-vice-presidente artístico da Record TV, emissora do bispo Macedo.

Ele já havia sido citado por Justino no livro. Ele “fora um grande amigo” para quem confidenciou, em carta, sobre sua suspeita de estar com a “doença incurável” (a Aids), diz. Segundo Justino, dois meses depois Macedo o chamou em seu escritório para ejetá-lo da igreja.

O ex-pastor está fora dela há três décadas. Olhando em retrospecto, não estranha a relação da Universal com o presidente Jair Bolsonaro, trincada após bispos criticarem o governo por não se empenhar mais na crise em Angola.

É vista como um aceno à igreja a indicação para a embaixada da África do Sul do ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, sobrinho de Macedo que terminou seu mandato numa prisão depois revertida.

“Não acredito que o apoio da instituição ao bolsonarismo seja irreversível, apesar de todos os benefícios que recebe do governo”, diz Justino. “[Fernando] Collor também foi bondoso com eles, concedendo a Record, e foi abandonado. Dilma [Rousseff] deu ministérios no seu governo [Crivella foi seu ministro da Pesca] e acabou traída por eles.”

“A Universal não tem ideologia política, ela fica ao lado de quem tem o poder ou sinaliza que irá alcançá-lo. Se Bolsonaro demonstrar fraqueza para as próximas eleições, eles não terão o mínimo constrangimento de aliar-se ao Lula novamente ou a quem quer que seja.”

NOS BASTIDORES DO REINO: A VIDA SECRETA NA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Preço: R$ 48 (208 págs.), R$ 34 (ebook)

Autor: Mário Justino

Editora: Geração Editorial

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Fonte yahoo
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