Quando as vacinas resolverão a crise de covid-19 na Índia?

Todos os adultos podem se vacinar desde 1o de maio. Mas como os suprimentos são limitados, especialistas temem que os pobres não consigam receber a dose.

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CHENNAI Às 9 da manhã no horário local, o segurança no portão de um centro de saúde básica em Chennai, cidade grande no sul da Índia, manda as pessoas retornarem para casa. A maioria veio para tomar a segunda dose da Covaxin, uma das duas vacinas contra a covid-19 atualmente disponíveis na Índia que requerem duas doses. Alguns estendem o celular e alegam ter feito cadastro no aplicativo de vacinas do governo. Mas o guarda responde que é tarde demais. Apenas uma caixa com ampolas suficientes para cem doses havia chegado no início da manhã. “As pessoas aguardavam desde as 6 da manhã”, conta ele. “Acabaram as vacinas.”

Em meio à segunda onda mortal na Índia, seus cidadãos antes hesitantes agora correm para serem vacinados. Mas há poucas vacinas disponíveis — e, segundo temem alguns, logo sua escassez acentuará ainda mais. Em uma iniciativa para expandir a imunização, o governo anunciou recentemente que todos com mais de 18 anos poderiam se vacinar a partir de 1o de maio. Mas isso implicaria aumentar o acesso a 600 milhões de pessoas além dos 300 milhões com mais de 45 anos, faixa etária atualmente a ser vacinada.

Além disso, o governo desregulamentou a compra e o preço das vacinas, em uma medida que, segundo especialistas, pode levar à ampla desigualdade. Menos de 9% da população do país, de cerca de 1,4 bilhão de habitantes, recebeu uma dose até o momento; menos de 2% receberam ambas as doses.

A Índia atualmente produz cerca de 75 milhões de doses de vacinas por mês e é esperado que esse montante aumente para 100 milhões de doses até junho. A Rússia está oferecendo ajuda adicional, prometendo enviar 5 milhões de doses de sua vacina Sputnik V em maio, enquanto a Índia acelera seu trâmite de aprovação. Os Estados Unidos também podem enviar seu estoque excedente de vacinas da AstraZeneca, cujo uso já está autorizado. Ainda assim, os números estão muito aquém dos bilhões de doses necessárias para vacinar os 900 milhões de pessoas que estão prestes a ter direito à vacinação.

O anúncio da desregulamentação provocou uma corrida por compras de vacinas por parte de governos estaduais e também algumas empresas privadas e hospitais. Mas, infelizmente, a conta das vacinas não fecha: até mesmo os estados que pretendem adquirir doses extras já admitiram que não conseguirão vacinar a faixa etária entre 18 e 44 anos a partir de 1o de maio.

“A meta inicial de vacinar 300 milhões de vulneráveis não está nem perto de ser alcançada e agora há uma demanda maior ainda”, desabafou Prabir Chatterjee, ex-diretor do Centro de Recursos de Saúde do Estado em Raipur. “É uma grande confusão.”

Vantagem na pandemia

A vantagem da Índia com relação à pandemia eram as vacinas. O país é um dos maiores fornecedores mundiais de vacinas, com capacidade de produção entre 1,5 bilhão e 2 bilhões de doses por ano. O país também conta com décadas de experiência em imunização em grande escala. Mas, ao contrário dos Estados Unidos, o governo indiano não investiu no aumento da capacidade no ano passado e demorou a fazer pedidos aos fabricantes. Um dos motivos para tanto foi a complacência após um declínio drástico nos casos após setembro, o que levou muitos a acreditar que o pior da pandemia na Índia havia passado.

Lançando o programa de imunização do país em 22 de janeiro, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi enalteceu a capacidade do país de produzir suas próprias vacinas e ainda ajudar outros países.

Agora, com a média diária de casos acima de 350 mil há semanas e milhares de mortes a cada dia, o governo acelera para expandir a vacinação. Além de expandir o público-alvo com direito ao imunizante, o governo suspendeu as exportações de vacinas e está investindo milhões de dólares para aumentar o suprimento de vacinas da AstraZeneca e da Covaxin. Também acelerou o processo de aprovação das vacinas mais caras de mRNA da Moderna e da Pfizer-BioNTech, além da Sputnik V.

Mas, em uma iniciativa polêmica, o governo descentralizou a compra de vacinas, permitindo que fabricantes vendessem, a preços diferentes, metade de seu suprimento diretamente aos estados e ao setor privado. Os críticos alegam que a política de preços complica o cenário de abastecimento, permite lucrar em um momento de crise e pode criar desigualdade na distribuição de vacinas em uma sociedade já bastante desigual.

Normalmente, o governo indiano adquire vacinas diretamente dos fabricantes a um preço fixo e deixa a distribuição por conta das autoridades locais. Originalmente, o governo da Índia negociou um valor entre US$ 2 e US$ 2,75 por dose com o Instituto Sorológico da Índia (“SII”, na sigla em inglês), que produz a vacina da AstraZeneca, e com a empresa Bharat Biotech, que produz a Covaxin, desenvolvida no próprio país.

Diante da nova política, entretanto, a Bharat Biotech anunciou que passaria a cobrar cerca de US$ 8 por dose dos governos estaduais e US$ 16 do setor privado. O SII informou que cobraria US$ 5 e US$ 8, respectivamente. Para fins comparativos, a AstraZeneca cobra por dose US$ 2,15 na Europa e US$ 4 nos Estados Unidos. Esses valores maiores foram recebidos com críticas públicas generalizadas.

“Sempre há tensão entre lucro e saúde pública”, afirma Madhavi Yennapu, cientista sênior principal do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Estudos de Desenvolvimento (Nistads, na sigla em inglês) em Nova Délhi. “Mas não é possível deixar o livre mercado determinar os preços se a saúde pública for o objetivo.”

Ambas as empresas argumentaram que o reajuste de preços foi necessário para expandir a capacidade. Em um comunicado divulgado em 26 de abril, Adar Poonawalla, presidente do SII, declarou que “os preços originais haviam sido definidos excepcionalmente baixos em função dos recursos adiantados por esses países para a produção de vacinas quando não havia ainda uma garantia de sua eficácia”. Mas, após solicitações do governo da Índia, o SII baixou o preço em mais de um dólar a governos estaduais, ao passo que a Bharat Biotech baixou seu preço em quase três dólares.

Os governos estaduais não têm experiência ou poder de barganha para negociar bons preços com a indústria e, portanto, podem acabar competindo por vacinas entre si ou com o setor privado, observa Chandrakant Lahariya, especialista independente em políticas públicas e sistemas de saúde de Nova Délhi. Estados com mais recursos podem acabar adquirindo mais doses. E se os hospitais privados adquirirem seus próprios estoques, a elite urbana jovem poderá ser vacinada antes dos trabalhadores migrantes mais vulneráveis.

“O abastecimento de vacinas já não é suficiente e, ao expandir a faixa etária e permitir a participação do setor privado, corre-se o risco de excluir os pobres mais necessitados da vacina”, conta Lahariya.

Desigualdade no acesso

As disparidades na vacinação já estavam evidentes na fase anterior de imunização, com o comparecimento da classe média urbana e dos ricos para vacinação em números muito maiores do que os pobres. A distorção foi atribuída a diversos fatores, como a hesitação em tomar a vacina em razão de uma polêmica com a aprovação da Covaxin, à falta de divulgação pública e à dificuldade de trabalhadores de abrir mão de seu ordenado diário e procurar uma clínica de vacinação durante o dia.

Segundo especialistas, a divulgação é especialmente importante porque a hesitação pode voltar a ocorrer. Recentemente, no centro de vacinas em Chennai, Vishwanathan, de 50 e poucos anos, que só informou seu primeiro nome, verificava a disponibilidade de vacina para sua mãe idosa, cuja segunda dose havia atrasado. Ela havia protelado a imunização por ter ficado alarmada com a morte de um astro popular do cinema algumas semanas após a vacinação, conta ele.

As tecnologias também podem ser uma barreira. O aplicativo de cadastro para vacinação do governo é prático, mas limita a participação em um país onde metade da população não tem acesso à internet.

Essa abordagem de cadastramento nunca havia sido experimentada em programas de imunização indianos, conta Giridhara Babu, epidemiologista da Fundação de Saúde Pública da Índia, que atuou no programa de erradicação da poliomielite do país. Anteriormente, destaca ele, as autoridades preparavam planos distritais detalhados e estratégias de mobilização social para chegar às comunidades vulneráveis. Os indianos, prossegue ele, geralmente não buscam atendimento médico, exceto em caso de emergência.

“Esperar uma conscientização sobre esse aplicativo e que a população assuma a responsabilidade de se cadastrar não condiz com o comportamento habitual de busca por atendimento de saúde no país”, explica Babu, acrescentando que essa abordagem pode retardar a vacinação.

Embora, na maioria dos centros, seja permitida a imunização de pessoas sem cadastro, algumas autoridades locais afirmaram que é exigido o cadastro on-line de toda a faixa etária entre 18 e 44 anos. Ao que parece, a regra teria o objetivo de evitar que multidões cercassem os centros de vacinação após 1o de maio. Mais de 12 milhões se cadastraram em 28 de abril, quando o cadastro para a faixa etária mais jovem foi aberto, deixando o site fora do ar por um breve período.

O caminho à frente

Babu afirma que cabe agora às autoridades fazer planos para o segundo semestre, quando as limitações de abastecimento diminuírem e novas vacinas chegarem ao mercado. Com um subsídio de US$ 400 milhões do governo, a Bharat Biotech planeja expandir a produção anual para 700 milhões de doses até o fim do ano. A Rússia forneceu licenças a cinco fabricantes indianos para fornecer 850 milhões de doses anuais de Sputnik V à Índia e outros países.

A empresa indiana Biological E pretende produzir um bilhão de doses da vacina da Johnson & Johnson até o fim de 2022, com financiamento parcial dos Estados Unidos. Outra empresa indiana, a Cadila Healthcare, espera obter aprovação para sua própria vacina, a ZyCov-D, nos próximos dois meses, com uma meta de produção anual de 250 milhões de doses.

A Índia também poderia aproveitar a capacidade histórica, mas subutilizada, de seu setor público, afirma Yennapu, do Nistads em Nova Délhi. A pesquisa e o desenvolvimento de vacinas na Índia remontam à era colonial britânica e incluíram iniciativas mundiais para desenvolver vacinas contra a varíola e a peste bubônica. A manufatura passou por uma grande expansão na década de 1970, e algumas dessas instalações do governo atualmente estão ociosas.

“Com algumas melhorias, é possível aproveitar essa capacidade ociosa em futuras ondas ou epidemias”, sugere Yennapu.

Embora parte do fornecimento previsto será destinada a outros países, o governo deve começar a refletir sobre uma estratégia neste momento, alerta Babu. “É preciso reforçar nosso microplanejamento e acelerar a vacinação a partir de junho”, prossegue ele. “Qual é o público-alvo da vacinação, qual é sua localização, como fornecer acesso nessas regiões?”

Chatterjee, de Raipur, concorda, acrescentando que é sensato cogitar uma limitação a determinadas faixas etárias ou regiões geográficas, contanto que sejam atendidos os mais vulneráveis. A decisão anterior de vacinar todos com mais de 45 anos foi tomada com base nos padrões da primeira onda, ao passo que a medida recente de expansão do público-alvo da imunização foi um pedido dos estados mais atingidos, onde pessoas mais jovens estão adoecendo na segunda onda.

“É válido o argumento de que o estado de Maharashtra deveria vacinar todos porque é onde está concentrada a pandemia”, afirma ele. “Mas é necessário administrar as verbas e os materiais e, ao mesmo tempo, avaliar se é preciso ser tão seletivo. Não devemos nos abster dessa discussão; é preciso planejamento.

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Fonte nationalgeographicbrasil
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