Como a segunda onda da Índia se tornou o pior surto de covid-19 do mundo
O aumento repentino de casos levou o sistema de saúde do país ao colapso. Faltam leitos hospitalares, oxigênio e medicamentos. E ainda há as variantes.
NOVA DÉLHI Nas últimas semanas, as redes sociais indianas receberam uma enxurrada de mensagens pedindo socorro: tuítes de hospitais sobre suprimentos de oxigênio cada vez menores e de médicos que testemunhavam impotentes mortes evitáveis de pacientes. Um jornalista que implorava por um leito de hospital, o qual lhe foi negado, recorreu ao Twitter para registrar o agravamento de seu estado até finalmente morrer. Crematórios lotados trabalham ininterruptamente para dar conta dos corpos; fornalhas derreteram devido ao uso excessivo e plataformas funerárias adicionais estão sendo montadas do lado de fora. São mensagens comoventes e imagens aterradoras que destacam a impiedosa segunda onda da pandemia de covid-19 que assola o país.
A Índia quebrou o recorde mundial de maior número de casos novos diários de covid-19 em 1º de maio de 2021, ultrapassando 401 mil casos novos, quando as mortes em 24 horas ultrapassaram o marco de 3,5 mil, segundo o ministério da saúde do país.
“Houve um descuido completo e, em janeiro, acreditamos que a pandemia havia acabado — com isso, a vigilância e o controle da covid-19 foram relegados a um segundo plano”, afirma K. Srinath Reddy, presidente da Fundação de Saúde Pública da Índia. Mas “ainda havia uma proporção considerável de pessoas nas grandes cidades e também em cidades e vilarejos menores, que não haviam sido expostas ao vírus no ano passado e, portanto, estavam suscetíveis”.
Com a redução dos casos entre setembro de 2020 e meados de fevereiro de 2021, o governo indiano, sob a liderança do primeiro-ministro Narendra Modi, ignorou os alertas de uma segunda onda, apesar da identificação de novas variantes em janeiro, segundo reportagens na imprensa.
“Continuamos alertando que a pandemia não havia acabado, mas ninguém nos deu ouvidos”, conta Rakesh Mishra, principal cientista sênior e diretor do Centro de Biologia Celular e Molecular com sede em Hyderabad, que atualmente estuda se uma nova variante local — a B.1.617 — é responsável pela segunda onda da Índia.
Segundo Mishra, após a primeira onda, o sistema de saúde passou a atender outras emergências médicas negligenciadas durante esse período, e as instalações exclusivas para covid-19 foram reconvertidas às suas funções anteriores.
Em março, algumas semanas antes do novo surto, Harsh Vardhan, médico e ministro da saúde indiano, declarou que a Índia estava no “estágio final da pandemia da covid-19, ao justificar a decisão de seu governo de exportar recursos médicos a outros países. A Índia teve um aumento colossal de 734% em suas exportações de oxigênio a outros países em janeiro de 2021. Também exportou cerca de 193 milhões de doses de vacinas.
Mas a situação mudou drasticamente quando a Índia começou a registrar um aumento vertiginoso de novos casos a partir de 15 de abril, alcançando mais de 200 mil casos diários; agora o oxigênio dos hospitais está se esgotando. Em 23 de abril, a imprensa indiana divulgou que 25 pacientes gravemente doentes com covid-19 morreram devido à falta de oxigênio em um hospital público em Délhi.
“O surto chegou quando todos estavam desprevenidos e agora o sistema está totalmente sobrecarregado”, conta Mishra. Os indianos pararam de ser imunizados pelos centros de vacinação devido à escassez de suprimentos.
Da calma ao caos
No início da manhã de 22 de abril no Hospital Kailash no setor 71 de Noida, área residencial pacata e arborizada, ao menos dez pessoas contaminadas pelo vírus Sars-CoV 2 aguardavam para fazer uma tomografia composta de alta resolução — um sofisticado exame de imagem pulmonar utilizado para identificar inflamações em pacientes com covid-19. Suas idades variavam entre trinta e quase setenta anos, e todos esperavam para detectar possíveis danos causados pelo novo coronavírus. Por volta das 13h, o número havia disparado para mais de 50 pessoas.
Esse distrito arborizado da capital indiana, localizado no estado vizinho de Uttar Pradesh, possui uma população aproximada de 637 mil habitantes — a maioria dos quais vive em arranha-céus que pontilham o horizonte da cidade — e mais de 3,7 mil casos ativos. Em 18 de abril, o distrito registrou 700 novos casos, o maior pico de casos em um dia no estado desde o início da pandemia no ano passado.
Em um grande contraponto com o ano passado, as autoridades de condomínios passaram a divulgar atualizações diárias de casos dentro dos complexos residenciais. Nos grupos de bate-papo, há uma infinidade de pedidos de entrega de alimentos, materiais de limpeza doméstica, medicamentos e outros suprimentos relacionados à covid-19, enquanto hospitais continuam recusando pacientes gravemente enfermos e farmácias enfrentam dificuldades para fornecer medicamentos básicos como paracetamol ou fabipiravir, um comprimido antiviral aprovado para o tratamento de sintomas leves e moderados da covid-19.
“Estamos dispensando entre 10 e 15 pacientes todos os dias”, lamenta Monu (que não forneceu seu sobrenome), um dos atendentes do Hospital Kailash. “Não há leitos disponíveis.”
Em 22 de abril, o Supremo Tribunal de Délhi havia convocado uma audiência extraordinária às 20h — atendendo a um pedido urgente apresentado por um dos principais hospitais de Délhi, o Max Patparganj. O hospital havia informado o tribunal de que possuía apenas três horas de oxigênio restantes — colocando em risco a vida de 400 de seus pacientes, incluindo 262 que testaram positivo para a covid-19.
Mutante dupla é responsável pelo surto?
Essa segunda onda na Índia havia sido amplamente atribuída à variante B.1.1.7 — identificada pela primeira vez no Reino Unido — que aumentou os casos no estado de Punjab. Outra possível responsável é a chamada B.1.617, variante local com duas mutações preocupantes, originária de Maharashtra, o estado mais afetado.
Essa variante, B.1.617, que se acredita também ter provocado novos surtos em Bangladesh e no Paquistão, levou muitos países, como os Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, a desaconselhar viagens de seus cidadãos a tal região.
O Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington afirma que pesquisas de soroprevalência, que medem o percentual de pessoas em uma população com anticorpos contra o vírus Sars-CoV 2, e seus próprios modelos apresentam uma forte indicação de que a nova onda está ligada a “variantes resistentes” — capazes de burlar a imunidade proporcionada por uma infecção anterior. As vacinas também são menos eficazes contra essas variantes. No entanto experimentos realizados no instituto de Mishra em 22 de abril concluíram que a B.1.617 não era resistente à proteção oferecida pela Covishield (também conhecida como vacina da AstraZeneca), uma das vacinas do programa de imunização da Índia.
“Uma segunda onda maior tem sido uma tendência histórica global dessa doença”, afirma Rajib Dasgupta, epidemiologista e presidente do Centro de Medicina Social e Saúde Comunitária da Universidade Jawaharlal Nehru em Nova Délhi. Após a identificação de uma nova variante, acrescenta ele, sua epidemiologia deve ser estudada e recursos básicos, levados às áreas afetadas para reforçar a capacidade de atendimento.
Na Índia, o surto se limita a determinados distritos de um estado. É “diferente do Reino Unido, por exemplo, onde a variante do Reino Unido foi considerada responsável por 70% a 80% dos casos”, observa Dasgupta. “A Índia é tão ampla e heterogênea que provavelmente surgirão muitas variantes que precisarão ser identificadas e rastreadas.”
A cada nova variante, prossegue ele, tende a haver uma aceleração na propagação, sobretudo se for uma variante resistente. Identificar essas variantes e personalizar a resposta a elas podem contribuir para controlar os surtos de forma mais eficaz, acrescenta ele. “Em um país como a Índia, uma epidemia é, na realidade, formada por diversas epidemias e, assim, são necessárias várias estratégias para seu enfrentamento”, ressalta Dasgupta.
O instituto de Mishra também constatou que a dupla mutante é responsável por apenas cerca de 10% dos casos em todo o país. Em Maharashtra, onde essa variante era a predominante, ela representava apenas 30% dos casos. “Acredito que a culpa por esse surto seja do comportamento humano”, afirma Mishra.
Euforia prematura
A causa das segundas ondas em todo o mundo geralmente foi atribuída ao comportamento humano. Durante a segunda onda nos Estados Unidos, com duração de 45 dias, Lisa Maragakis, especialista em doenças infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins, escreveu em um artigo que observou que, “após tantos meses de cancelamentos de atividades, desafios econômicos e estresse, as pessoas estão frustradas e cansadas de tomar precauções contra o novo coronavírus” e esses fatores “impulsionaram surtos e picos nos casos de covid-19”.
Também na Índia, um ano de esgotamento causado pela covid-19 deu lugar a uma euforia imprudente com a imunidade coletiva à medida que os casos começaram a diminuir em janeiro. Mas, como diz Reddy, “nesta época de tanta mobilidade, a menos que o mundo inteiro adquira uma imunidade significativa, a imunidade coletiva não será alcançada”.
Mas advertências como essas, segundo Reddy, foram descartadas por serem “pessimistas”. Mishra foi acusado por muitos de seus conhecidos de dar falso alarme sobre uma segunda onda. Em 1° de abril, o Kumbh Mela, evento religioso anual, também recebeu permissão para iniciar com toda pompa. Após 3,5 milhões de devotos indianos se reunirem no estado de Uttarakhand para darem seu mergulho sagrado anual no rio Ganges, não foi surpresa que isso tenha se transformado em um evento de supercontágio — embora seu efeito total só será conhecido após algumas semanas. No curto prazo, o evento aumentou o número médio de casos diários em Uttarakhand, entre 30 e 60 casos em fevereiro, para uma média diária entre 2 mil e 2,5 mil em abril.
Cinemas, escolas, shoppings, bares e restaurantes puderam reabrir em outubro do ano passado, restrições a convidados em cerimônias de casamento foram afrouxadas e políticos cruzaram livremente o país para comícios eleitorais quando quatro estados indianos foram às urnas para eleições regionais.
Em Bengala Ocidental, estado que realiza eleições para um novo governo, a votação ocorre entre 27 de março e 29 de abril, por isso, o estado continua a realizar amplos comícios e campanhas eleitorais com multidões, até mesmo com a disparada nos casos diários. Em 1° de abril, o estado registrou mais de 6,5 mil casos. Em 23 de abril, o estado registrou 12 mil novos casos — com tendência de alcançar 20 mil nos dias seguintes.
Outra variante mais infecciosa denominada cepa de Bengala — uma mutante tripla — também foi identificada como a causa de diversas infecções no estado. O primeiro-ministro Modi cancelou os comícios eleitorais em Bengala Ocidental em 23 de abril devido ao surto.
Corrida contra o tempo
A segunda onda poderia ter sido evitada? Especialistas dizem que não. Mas ela poderia ter sido substancialmente menor. “Normalmente, em todos os países, a segunda onda é sempre muito maior do que a primeira e a razão é que, na segunda onda, muitos adultos mais jovens são afetados”, explica Dasgupta.
Um comunicado do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, na sigla em inglês), centro global independente de pesquisas de saúde da Universidade de Washington, informa que o número de casos diários de covid-19 na Índia é o dobro do registrado no pico anterior em setembro de 2020. O instituto prevê que o número de mortos em decorrência da covid-19 na Índia provavelmente dobrará para 665 mil até 1° de agosto de 2021.
“Sem medidas drásticas para reduzir a interação social e um aumento efetivo do uso de máscaras, tudo indica que a situação ficará bastante sombria na Índia”, informou o comunicado.
O IHME prevê que as mortes diárias chegarão a um pico de 5,6 mil em 10 de maio. O instituto afirma que, se a Índia conseguir adotar o uso universal de máscaras na última semana de abril, poderá evitar 70 mil mortes.
No dia 1 de maio, todos os indianos com mais de 18 anos poderão se vacinar. Se tudo correr conforme programado, o IHME prevê que mais 85,6 mil vidas poderão ser poupadas até 1 de agosto.
As próximas três semanas, alerta Reddy, serão fundamentais para conter o aumento: “será uma corrida contra o tempo”.