Juristas dizem que mensagens acessadas por Delgatti são “provas incontestes” de abusos da Lava Jato
Conjur – A cada conjunto de conversas entre procuradores do consórcio de Curitiba enviado ao Supremo Tribunal Federal, parte da comunidade jurídica é tomada por espanto e indignação com os métodos lavajatistas.
O acervo de diálogos apreendido no bojo de uma operação da Polícia Federal ainda quando estava sob o comando do então ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), que mirava hackers responsáveis por invadir celulares de autoridades, suscita dúvidas sobre o seu uso como prova, validade jurídica e até sobre investigação dos envolvidos.
O criminalista José Roberto Batochio diz acreditar que as conversas entre procuradores constituem caso de encontro fortuito de provas. “A discussão sobre ilicitude do conteúdo dessa prova perde a relevância que apresentaria se se tratasse de prova buscada e produzida em investigação instaurada especificamente com o escopo de apurar os crimes dos agentes da autoridade revelados, por acaso, fora de seu trilho investigatório”, explica.
O advogado lembra que esses diálogos foram apreendidos pela PF, tiveram cadeia de custódia preservada e que foram oficialmente periciados e objeto de decisões judiciais. “O encontro empírico das provas foi acidental. Tropeçou- se em um cadáver cuja existência se ignorava”, resume.
Parte relevante do material colhido pela operação spoofing já havia sido divulgada pelo site The Intercept Brasil e outros veículos na série que ficou conhecida como “vaza jato”. Os novos diálogos selecionados pela defesa do ex-presidente Lula, contudo, apresentam novo peso jurídico, uma vez que mostram que não só o petista, mas outras autoridades foram perseguidas pelos integrantes do Ministério Público no Paraná e pelo então juiz Sergio Moro.
Publicada no último dia 15 de janeiro nos três maiores jornais do país, uma carta assinada por mais de uma centena de advogados critica de forma dura e incisiva a maneira como estão sendo conduzidos os processos na operação “lava jato”. O texto afirma que o Brasil passa por um período de “neoinquisição” e que, no “plano do desrespeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados, a ‘lava jato’ já ocupa um lugar de destaque na história do país”.
Assinaram a carta, entre tantos outros, os advogados Eduardo Sanz, Augusto de Arruda Botelho, Flavia Rahal, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Maira Salomi (ex-sócia de Márcio Thomaz Bastos), Nélio Machado, Pedro Estevam Serrano, Roberto Podval e Técio Lins e Silva.
A atuação dos procuradores e de Sergio Moro visava desde influenciar no processo eleitoral, emparedar ministros do STF e STJ que eles consideravam críticos aos seus métodos e até influir no processo de escolha do presidente do Tribunal de Contas da União.
Uso legitimo
O jurista Lenio Streck, colunista da ConJur, entende que a prova já está validada no sentido de que possui verossimilhança e foi alvo de decisão do STF. “Pode ser usada para beneficiar qualquer réu que tenha sido prejudicado pelos atos que configuram suspeição e parcialidade. Isso é líquido e certo. No caso, não somente Lula. Transcende aos seus processos. Proibições de uso de prova só se aplicam ao Estado. Ao réu, não. É o Leviatã contra o cidadão”, afirma.
Lenio explica que a ilicitude não é “ilicitude” quando se trata de direito de defesa. “E, no caso, foi um terceiro quem ‘descobriu’ o “veneno das raízes da árvore”. Os potes (aparelhos telefônicos) que continham o veneno eram, inclusive, de propriedade do Estado. Os frutos (provas e sentença, nessa ordem) estão viciados”, diz.
Streck sustenta que se esses diálogos tivessem sido descobertos nos Estados Unidos ou no Reino Unido, conforme decisões recentes (Panamá Papers e Wikileaks), juiz e procuradores seriam processados. “Por aqui, a questão é nova.” Ele também lembra que caso tivessem sido aprovadas as 10 Medidas, Moro e os procuradores poderiam ser processados.
O advogado Fabrício de Oliveira Campos, por sua vez, afirma que, apesar de não ter simpatia por medidas de legitimação de provas ilícitas, é preciso reconhecer que o conteúdo do material hackeado interessa à defesa dos acusados já que revelam “desvios de poder e corrupção da parcialidade judicial e para essa finalidade”.
Ele acredita que a validade das “provas da operação spoofing recai primeiramente contra o autor da interceptação daqueles dados, mas pode ser empregada em favor da defesa por ser direito fundamental do acusado o acesso ao devido processo legal, princípio que o conteúdo das mensagens aponta que foi agredido pela inexistência de parcialidade do julgador”.
A possibilidade de inversão do ônus da prova, isto é, que os participantes das conversas sejam obrigados a invalidar a veracidade do material não convence o professor, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado Ingo Sarlet. “A matéria é delicadíssima. Estou confesso não totalmente convencido da tese do ônus da prova, mas sim da possibilidade de uso para investigação e processo”, diz,
Fraude de segundo nível
O criminalista Alberto Zacharias Toron diz acreditar que o uso do material apreendido só pode ser usado pela defesa. “Que as conversas são reais, não há dúvida nenhuma. Malgrado autênticos elas não podem ser usadas para incriminar os agentes públicos. Tanto para fins penais como no administrativo”, explica.
Toron faz uma ressalva em caso de descoberta de casos como o depoimento supostamente forjado para ajudar os procuradores da “lava jato” pela delegada Erika, provavelmente a delegada da Polícia Federal Erika Marena. “Fabricar um depoimento é algo muito grave e deve ser alvo de uma apuração”, sustenta.
Toron cita diálogo mantido entre os procuradores Deltan Dallagnol e Orlando Martello Júnior em janeiro de 2016. Nele, eles relatam o que contou uma delegada da Polícia Federal chamada Erika — possivelmente a delegada Erika Marena, que era a responsável pelos casos da “lava jato”.
“Como expõe a Erika: ela entendeu que era pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada… Dá no mínimo uma falsidade… DPFs são facilmente expostos a problemas administrativos”, disse Deltan.
Streck acredita que o caso do depoimento supostamente forjado irá dar muito pano para manga. “Há relatos de fraude para encobrir fraude processual — exemplo, diálogos sobre a delegada Erika. Os diálogos mostram uma fraude de segundo nível, em que o Estado busca, ilicitamente, encobrir uma ilicitude que deveria ter sido objeto de um agir de ofício, no caso, os procuradores deveriam ter aberto investigação quando souberam da fraude. A ver”, resume.
Para o criminalista Pierpaolo Cruz Bottini, “o material pode ser usado para beneficiar réus, reconhecer a suspeição de juízes, anular atos ilegais, pois revela atos abusivos de parte de agentes estatais”. “Mas não se presta a atribuir responsabilidade a quem quer que seja. Ainda que haja cadeia de custódia, ainda que o material seja verdadeiro e íntegro, sua origem ilícita mácula qualquer validade como prova ou indício de acusação. O Estado de Direito vale para todos, mesmo para aqueles que criticamos ou discordamos. Abrir o precedente de validar provas ilícitas, ainda que parcialmente, é mexer com uma caixa de Pandora, com efeitos preocupantes para o devido processo legal.”