Mesmo sem previsão legal, prisão pode ser revogada por falta de alimentação adequada
Não há previsão legal para a revogação de prisão preventiva pela falta de alimentação adequada às crenças do detento. No entanto, o juiz pode libertar provisoriamente o preso se isso estiver lhe causando sofrimento excessivo — e se outras medidas cautelares forem suficientes para preservar as investigações e a ordem pública.
A juíza Placidina Pires, do Tribunal de Justiça de Goiás, substituiu por medidas cautelares alternativas a prisão preventiva de uma advogada vegana porque a unidade prisional não oferecia alimentação adequada de origem não animal. Ela é investigada pela suspeita de integrar organização criminosa especializada na exploração de jogos de azar e na lavagem dos valores obtidos com a prática.
Em pedido de Habeas Corpus, a defesa da suspeita sustentou que ela não praticou crimes e ressaltou que, por ser vegana, a advogada estava comendo apenas cenoura e quiabo, uma vez que a cadeia não possui alimentação balanceada não derivada de origem animal. Devido à má alimentação, argumentou a defesa, a advogada teve de ser levada às pressas para um hospital, onde está internada em estado grave.
Placidina Pires foi atacada nas redes sociais depois que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) criticou a decisão no Twitter: “Enquanto em todo o mundo a primeira coisa que ocorre a um preso é perder determinados direitos, no Brasil é o contrário, a preocupação é em preservar todos os direitos do preso. Não a toa temos toda essa criminalidade.” A Associação dos Magistrados Brasileiros defendeu a juíza.
O professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Aury Lopes Jr. afirma que a revogação de prisão preventiva por falta de alimentação adequada às crenças do detento não é uma hipótese prevista em lei. “Mas nada impede que, no caso concreto e ponderando desproporcionalidade entre o sofrimento causado e a necessidade cautelar, o juiz faça a substituição. Prisões cautelares são a última ratio do sistema e sempre se deve preferir a substituição por medidas cautelares diversas, ou até o regime especial da prisão domiciliar, do que a prisão preventiva.”
A decisão sobre a manutenção ou revogação de prisão preventiva está vinculada à permanência ou não dos requisitos que a justificaram, ressalta o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Salo de Carvalho. Segundo ele, a restrição alimentar — assim como qualquer outra questão relacionada à saúde do preso — deve ser analisada pelo juiz. E a legislação oferece alternativas, que vão desde a autorização de ingresso de alimento próprio na cadeia à substituição da preventiva por prisão domiciliar, destaca.
O problema é esse tipo de decisão — revogação da prisão preventiva por falta de alimentação vegana — só ocorre quando o preso não é pobre e negro, critica Salo de Carvalho. “A situação que deve gerar desconforto, no caso, é a da aplicação seletiva da medida cautelar, ou seja, desse cuidado necessário não ser um cotidiano do Judiciário com toda a massa carcerária, mas apenas quando o preso destoa do padrão social e racial do encarceramento brasileiro.”
Já na visão de Gustavo Badaró, professor da Universidade de São Paulo, o fato de uma cadeia não possuir dieta adequada às crenças do detento não justifica a revogação da prisão preventiva, por falta de previsão legal.
“É evidente que a sociedade deve acomodar diversas expressões multiculturais — religiosas, ideológicas, políticas. E isso inclui o veganismo. Mas o Estado não é obrigado a ter condições carcerárias para cada tipo de situação. O judeu tem um tipo de alimentação específica, o muçulmano só come carnes com um tipo de abate dos animais… se isso for levado às últimas consequências, ou o Estado vai ter que ter um cardápio enorme, de todas as variedades, em todos os sistemas prisionais, ou uma prisão para cada grupo étnico, para cada tipo de alimentação que se professe na sociedade.”