A morte na espreita
Ao longo de 2020, ano aziago na história da humanidade, ela esteve lá, olhando e perversamente escolhendo. Até meados de dezembro, contávamos 1.652.906 mortos em todo o mundo. E contávamos covas entre o medo e o medo, entre o pânico e o pânico, entre o sobressalto e o sobressalto. O ano escorreu no tempo. E escorreu de nossos olhos
Quando se cavam covas e mais covas com a certeza de que corpos vão lotá-las é porque se está em uma guerra. E foi assim ao longo de 2020: uma cruel guerra travada contra o vírus da Covid-19. Covas para mortes em série, covas para mortes idênticas, covas para mortes pasteurizadas, covas para morte besta — rasas e pequenas e escuras covas para gente morta, gente a quem, agora, já não fazia diferença se tinha família grande, pequena ou se nem a possuía em vida. Motivo: para a esmagadora maioria dos que partiram pelo coronavírus não houve despedida, nem velório, nem antífonas porque seria inevitável a infecção. Houve, sim, choro coletivo, porque só os seres de coração petrificado (e eles existem) conseguiram se manter impassíveis. Aos trancos e barrancos, o mundo dos vivos teve de se acostumar com a vida solitária — e só restava chorar pela solitária morte que ia acontecendo em um alucinante ritmo. Hoje, quando esse texto está sendo escrito, é quinta-feira, 17 de dezembro. Quantas pessoas morreram em todo o mundo pela Covid até essa data? É o mesmo que indagar: até aqui, quantas covas abrigam os que faleceram de Covid no planeta? Resposta: 1.652.906. Esse era, então, o número total de valas do vírus.
Faça-se um corte, do mundo para o Brasil, do Brasil para a cidade de São Paulo, da cidade para um modesto bairro da zona leste e, nele, para um cemitério: o de Vila Formosa, o maior da América Latina. A mídia nacional e estrangeira expuseram a imagem aérea de valas abertas na terra seca. Era maio. Chega-se a dezembro, ao mesmo dia 17, com 183.735 óbitos no País. E a morte, em todos os cantos, seguia na espreita. Para que se lembrassem da dor e sofrimento em enterros sem adeus, cruzes foram fincadas na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em memória às vítimas. Também correu o planeta fotos de outras terríveis situações, como, por exemplo, na Itália. Atingiu-se um ponto no qual ou se morria nas ruas ou se morria em casa, tal a lotação hospitalar. Vizinho sentia cheiro do vizinho morto, nas ruelas cadáveres foram empilhados. Os veículos frigoríficos já não davam conta de recolher as vítimas fatais. E ela, lá, espreitando em sua forma de vírus. A Itália fechou o ano com cerca de setenta mil mortos. E, em forma de vírus, ela, lá, espreitando.
Volte-se, aqui, ao mundo de forma geral. Calejados coveiros repetiam cenas de choro. Coveiro chorando ao enterrar morto? Sim, senhor, coveiro chorando porque, até então, por mais triste que fosse, a morte embutia relativa naturalidade. Com a pandemia, não. Passou a ser antiestética. Cabisbaixos coveiros rezavam baixinho nos enterramentos, vimos repetidamente essa cena. Eles foram golpeados na emoção; e milhares, nos pulmões.
Trabalham com precários instrumentos de proteção individual. Morrem de Covid-19. Nesse ponto, foi a história que copiou a si mesma, replicou-se: em meio à pandemia do coronavírus repetiram-se episódios de 1918, quando outra pandemia, a da gripe espanhola, matou setenta milhões de pessoas na face da Terra. À época, foi tanta a morte de coveiros que gente das mais diversas profissões passou a ser convocada para substituí-los. Em 2020, muitos coveiros sepultaram seus colegas de trabalho. É muita dor. E, cá no Brasil, em meio a isso, o presidente Jair Bolsonaro desvalorizava, como desvaloriza tudo aquilo que frequenta a sua boca, essa humilde profissão. Em abril, no auge da Covid no País, respondeu ao ser perguntado sobre a crescente contaminação: “não sou coveiro, tá?”. Diferentemente de Bolsonaro, esses profissionais, desprovidos de equipamentos sanitários adequados e que seguiram batalhando na linha de frente, choraram pelas famílias em luto. E tantos sucumbiram ao vírus nas covas que cavaram…
E ela, lá, espreitando… Não só no Brasil ou na Itália o colapso de um inimigo invisível foi devastador. Obviamente a pandemia traumatizou geral, mas houve lugares em que a ferida ficou ainda mais exposta em imagens. Na América do Sul, a capital do Equador, Quito, viveu, em fevereiro, dias de terror. Foram mais de duzentos mil casos em um país com cerca de dezessete milhões e quinhentos mil habitantes. Tanto é assim que se tratou de uma das primeiras nações a decretar toque de recolher e repressão policial se ele não fosse obedecido. Cenas de um Equador agonizante ao relento colaram para sempre em nossas retinas: corpos estirados nas ruas e embalados em plástico. Plástico azul. A população pobre, sem acesso a praticamente nenhuma medida sanitária, sem comida, sem remédio, só por Deus perambulava e implorava às equipes de reportagens por um prato de comida, um copo d’água, uma bebida alcoólica. Na cidade de Guayaquil, o medo era a regra. Cercados pela miséria, esquálidos corpos ainda vivos pareciam já ter sangue frio e coagulado nas veias. E era fevereiro, e estamos em dezembro. Qualquer memória sensível faz o retrospecto de um ano que escorreu entre o medo e o medo, entre o pânico e o pânico, entre o sobressalto e o sobressalto, entre o nada e o nada. Todos nós sabíamos que ela estava lá, espreitando. O ano escorreu no tempo. E escorreu dos nossos olhos.