“O que Bolsonaro faz é agudizar o ódio do Brasil pela Amazônia”

Em novo livro, cientista social mostra que a relação conturbada do Brasil com a região amazônica não é de hoje

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Os dados mais recentes sobre o desmatamento da Amazônia deixam claro: o futuro da maior floresta tropical do planeta é preocupante. A derrubada de árvores avança a passos largos — somente em julho, o desmate aumentou 278% em relação ao mesmo mês do ano passado; em junho, o crescimento foi de 88% em comparação a junho de 2018. Os números vêm de um sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que monitora diariamente alterações na cobertura florestal.

Como se não bastasse, as queimadas no bioma também atingiram níveis inéditos: apenas neste mês, os incêndios na floresta representam 65% dos focos registrados pelo Programa Queimadas, também do Inpe. Esse percentual em relação a outros tipos de vegetação é o maior em um mês de agosto desde 2003, quando o acompanhamento começou a ser feito.

Mas basta olhar para o passado para entender que há muito tempo a floresta é explorada e os povos que vivem ali são ameaçados. O livro História da Amazônia: do Período Pré-Colombiano aos Desafios do Século XXI, do romancista e cientista social Márcio Souza, é um dos mais completos sobre o território amazônico não apenas do Brasil mas também dos outros países que contam com porções do bioma.

A obra recém-lançada aborda, entre outras coisas, as origens dos primeiros humanos que habitaram a região; a colonização por parte de portugueses, espanhóis, franceses e holandeses; os diversos cientistas que se embrenharam na mata para estudar e documentar o que viam; e, ainda, as decisões ao longo da história brasileira que, na visão do autor, acabaram subdesenvolvendo uma região que tinha padrões de Primeiro Mundo até meados do século 19.

Souza conta que o livro é resultado de 20 anos de pesquisas. “Queria impressionar o leitor comum, que tem uma curiosidade sincera sobre a Amazônia e deseja saber mais sobre essa região exótica e misteriosa”, diz o também autor de Mad Maria. Nascido em Manaus em 1946, mudou-se para São Paulo para cursar Ciências Sociais na USP. Foi quando se deu conta de que pouco sabia sobre as origens de sua terra e assumiu a missão de conhecer a fundo a história da floresta mais importante do mundo. Ainda bem — seu trabalho deixa claro por que precisamos, mais que nunca, protegê-la.

A região amazônica já foi conhecida por ser um lugar de muita riqueza e prosperidade. Como era essa época?

A Amazônia não existia para os brasileiros até 1835. Chamava-se Grão-Pará, era uma outra administração colonial. Se você pegasse uma máquina do tempo e desembarcasse em Manaus ou Belém em 1790, eles não saberiam o que é Amazônia. As pessoas daqui se consideravam portugueses americanos, não brasileiros. Falamos muito parecido com os cariocas porque fomos colonizados por administradores da capital do reino, em Lisboa.

Era uma colônia baseada na exploração de café, cacau, látex, algodão. Mas sempre houve uma experiência de modernidade. Para ter uma ideia, ninguém andava descalço aqui: havia uma produção grande de sapatos de couro. Muitos viajantes europeus ficavam impressionados com o fato de que no século 18, em que só ricos tinham sapatos de couro na Europa, todo mundo os usava em Belém do Pará, capital do Grão-Pará.

E o que aconteceu quando Brasil e Grão-Pará se unificaram no século 19?

No início do século 19, houve uma espécie de Guerra da Secessão [guerra civil norte-americana entre os estados do Sul e do Norte que ocorreu entre 1861 e 1865]. O Grão-Pará foi destruído quando o vice-reino do Brasil invadiu a região, em 1835. O exército português havia ido embora, então houve muita resistência por parte do povo mesmo. Os invasores mataram 40% da população e transformaram o Grão-Pará em Amazonas. Só fomos recompor razoavelmente a densidade populacional no século 20, nos anos 70.

No imaginário de muitas pessoas, na Amazônia só há floresta e índios. Em sua opinião, quais aspectos da cultura local são desconhecidos?

Já no século 18, Manaus tinha uma intensa produção musical, especialmente lírica. Em 23 de dezembro de 1793 estreava a ópera Os Pastores do Amazonas, de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro poeta de língua portuguesa da Amazônia. A Universidade Estadual do Amazonas (UEA) tem uma orquestra barroca que existe há 20 anos. Ópera e concerto são mais populares do que jogo de futebol por aqui. O Teatro Amazonas existe há mais de cem anos e é usado quase que diariamente, com programação nacional, internacional e local. E tem público. Então, por que essa visão de que só existe natureza e mais nada? Parece até que aqui é a Lua, sem vida inteligente.

No livro, você fala sobre cientistas, a maioria estrangeiros, que se dedicaram a estudar a região. Quais países mais se destacam na produção científica sobre a Amazônia?

Nos Estados Unidos, os estudos são principalmente na área da antropologia. A Suíça tem um centro especializado em questões legais da preservação do meio ambiente. Já na Holanda, os cientistas que estudam a Amazônia focam mais na Pré-História. Os trabalhos são surpreendentes.

Como os outros países amazônicos se relacionam com as áreas de floresta de seus respectivos territórios?

As histórias são muito distintas. A Venezuela tem menos de 10% do território na Amazônia. Nunca tiveram um projeto de desenvolvimento e, por isso mesmo, a cobertura vegetal está muito bem cuidada. A Colômbia já conta com uma cobertura maior, mas eles têm muito respeito, não há extensa destruição para plantação de soja, por exemplo. Em Leticia, capital do estado colombiano Amazonas, está um dos maiores centros de pesquisa do bioma amazônico. No Peru e no Equador a floresta também está razoavelmente preservada. E na Bolívia, a porção amazônica é muito pequena.

Você vê com preocupação os últimos dados sobre desmatamento na Amazônia brasileira?

É muito difícil desmatar latifúndios aqui, porque o Amazonas é como um arquipélago. A região do sul, na fronteira com o Mato Grosso, é o chamado meridiano da soja, cuja área desmatada vai subindo gradativamente. Mas chegará um momento que não terá mais para onde ir por falta de terras contínuas. O mais grave, na minha opinião, é destruir sem saber o que tem de valor ali. Algumas plantas e ervas daqui rendem bilhões de dólares para a indústria farmacêutica internacional. Pode ser que em alguma região exista um remédio que cure qualquer câncer e nós não sabemos. Mas o país nunca teve um plano de preservação, e parece que tem raiva de quem o proponha. O que Bolsonaro está fazendo é agudizar esse ódio do Brasil pela Amazônia.

Qual é o papel de entidades científicas, como o Inpe, para a manutenção da floresta?

É muito importante, porque a Amazônia é um subcontinente. É o maior território do Brasil. As tecnologias usadas são muito sofisticadas para determinar o que é incêndio natural e o que é desmatamento. Há padrões. A desconfiança em troca de preparar uma política predatória é lamentável.

Sobre a demarcação de terras indígenas, poderia falar um pouco sobre a importância de proteger essas áreas?

Uma parte ínfima está demarcada. Mas é importantíssimo que isso aconteça para garantir a segurança dessas populações, principalmente as mais frágeis, como os yanomamis, os habitantes mais antigos da América do Sul. Não há como trazer membros de uma etnia para a sociedade nacional. Qualquer esforço seria etnocídio.

O que mais preocupa você quando se trata do futuro da floresta amazônica?

Eu ia dizer que o futuro a Deus pertence, mas parece que Deus é um incendiário. É tão louco que é difícil prever. Nunca imaginei que, depois de tantos avanços e recuos, voltaríamos para o século 16

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Fonte revistagalileu
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