O colapso do setor aéreo
Pandemia do novo coronavírus abala a aviação e é apontada como um dos possíveis motivos para o fim do acordo entre Boeing e Embraer
Fronteiras fechadas para estrangeiros, voos cancelados, jatos voando quase vazios, frotas inteiras no chão. O setor aéreo tem sido um dos mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus. Nos últimos três meses, o número de voos comerciais no mundo sofreu uma redução de quase 70%, encolhendo de 109,4 mil operações diárias para 36 mil, segundo o site Flightradar24, que monitora o tráfego de aeronaves no planeta (ver gráfico abaixo). Desde o início da epidemia, mais de 180 países e territórios adotaram medidas limitando o tráfego aéreo ou restringindo a entrada de viajantes do exterior, de acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), que reúne as 300 maiores empresas aéreas do mundo.
A América do Sul, onde alguns governos agiram rapidamente fechando as fronteiras para conter a chegada da Covid-19, foi o continente mais afetado, com perda de cerca de 90% dos voos. No Brasil, a fim de evitar uma paralisação do transporte aéreo, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) coordenou com as empresas do setor o estabelecimento de uma malha essencial que atendesse todas as capitais. O volume de voos semanais caiu para 1.241 em abril, 8,5% do total. A expectativa é de uma gradual retomada das operações a partir do fim deste mês.
Quase 16 mil aviões – 61% da frota global –, segundo a consultoria Cirium, encontravam-se estacionados em aeroportos ao redor do mundo em 11 de maio. “Cerca de 90% da frota brasileira, de pouco mais de 400 aeronaves, está em terra. É um prejuízo incalculável”, lamenta Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Segundo ele, a Iata estima em US$ 314 bilhões o prejuízo global do setor este ano.
“Essa é a pior crise enfrentada pela indústria da aviação”, disse a Pesquisa FAPESP Richard Aboulafia, analista do setor aeronáutico e vice-presidente do Teal Group, consultoria norte-americana especializada nos mercados aeroespacial e de defesa. “A indústria irá se recuperar, mas vai levar um tempo. O tráfego de aviões voltará ao pico apenas em 2023, e a entrega de novas aeronaves pelos fabricantes só retornará ao nível anterior ao da pandemia um ou dois anos depois.”
Estudo divulgado no início de maio pela Organização da Aviação Civil Internacional (Icao), agência das Nações Unidas especializada no setor aéreo, traça um cenário desanimador. A redução no número de passageiros em voos internacionais pode chegar a 80% ao longo de 2020, em comparação ao ano anterior. Segundo o documento Efeitos do novo coronavírus (Covid-19) na aviação civil: Análise dos impactos econômicos, a perda de viajantes poderá chegar a 1,52 bilhão de passageiros (ver gráfico abaixo).
“Além de ser o momento mais dramático vivido pelo setor, não sabemos quando o problema vai ser resolvido”, pondera o especialista na indústria aeronáutica Marcos José Barbieri Ferreira, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Na crise do 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos foram vítimas de ataques terroristas, houve um impacto brutal no setor, mas por um período limitado. Agora, não sabemos a intensidade da crise nem quando vai terminar.”
Barbieri afirma que devem ocorrer mudanças profundas no setor, com companhias aéreas fechando as portas e outras se reestruturando para sobreviver. A colombiana Avianca Holdings, segunda maior companhia da América Latina, já entrou com pedido de recuperação judicial – em 2019, a Avianca Brasil, braço da empresa no país, havia encerrado suas operações.
“O impacto nas empresas de aviação é mais imediato. Elas vão precisar encolher suas operações, reduzindo malha aérea, frota de aeronaves e número de funcionários. Essa reestruturação terá reflexos nos fabricantes de aviões, como Boeing, Airbus e Embraer”, diz o especialista.
Fim do acordo
Com o setor tragado por uma crise profunda, a norte-americana Boeing surpreendeu ao anunciar, no fim de abril, a desistência da compra do setor de aviação comercial da Embraer, um negócio estimado em US$ 4,2 bilhões firmado em 2018. A fabricante de Seattle alegou que a brasileira não cumpriu as condições necessárias para a concretização do acordo. O negócio previa a criação de uma joint venture voltada à produção de jatos regionais, em que a Boeing teria 80% da empresa, batizada de Boeing Brasil-Commercial, e a Embraer 20%. A empresa de São José dos Campos (SP) divulgou, em nota, que a ex-parceira “fabricou falsas alegações como pretexto para tentar evitar seus compromissos de fechar a transação”.
A decisão da Boeing, que não explicitou quais as condições necessárias que a Embraer teria deixado de cumprir, levantou questionamentos no mercado. O que se sabe é que a norte-americana atravessa um dos mais delicados momentos de sua história desde que dois acidentes com o modelo 737 MAX, em 2018 e 2019, resultaram em 346 mortes. Mais recente versão da bem-sucedida família 737, o MAX havia entrado em operação em maio de 2017.
Os desastres, causados por falhas no projeto do jato, conforme apontaram as investigações, resultaram na imediata proibição de operação do avião no mundo e na interrupção de sua produção. Os problemas com o principal avião da Boeing levaram-na a ter um prejuízo de US$ 636 milhões em 2019, pior resultado em 20 anos. Ao mesmo tempo, pela primeira vez desde 2011, a empresa perdeu a liderança entre os maiores fabricantes para a arquirrival Airbus. O consórcio europeu entregou 863 aviões no ano passado, mais do que o dobro dos 380 da Boeing.
No fim de 2019, já havia rumores no mercado de que a Boeing estaria em busca de um pretexto para não levar adiante o negócio com a Embraer. Naquela época, o acordo ainda não havia obtido o aval da autoridade aeronáutica regulatória da União Europeia, fundamental para a concretização da parceria. O atraso, na visão de alguns consultores, não estava sendo encarado como algo negativo pela Boeing.
A pandemia de Covid-19 e seus graves reflexos na aviação parecem ter sido a pá de cal que faltava para o rompimento do negócio. “A situação financeira da Boeing, já deteriorada, ficou mais delicada ainda. Se por um lado a aquisição da aviação regional da Embraer era um bom negócio, por causa da excelência de sua área de engenharia, por outro exigia um aporte grande de recursos”, aponta Barbieri.
A maior perdedora
O fim da parceria com a Boeing traz desafios para a fábrica paulista de aviões. Estima-se que a Embraer tenha gastado R$ 485 milhões para separar sua área de aviação comercial dos setores de defesa e jatos executivos – recursos que pretende recuperar a partir de um processo de arbitragem aberto logo após a rescisão do contrato. Conduzida por um painel composto por três árbitros indicados pelas partes, a arbitragem é um mecanismo usado na solução de conflitos, sem envolvimento da Justiça.
Além de milhares de horas de estudos e análises investidos na parceria e outros tantos despendidos na separação física, organizacional e funcional da aviação comercial do resto da empresa, a Embraer deixou em compasso de espera novos projetos de longo prazo e estratégias para o futuro.
“A Embraer é, sem dúvida, a grande perdedora”, opina Richard Aboulafia. Segundo ele, a brasileira terá agora como concorrente direto a Airbus, maior fabricante aeronáutico, com receita 13 vezes superior à da brasileira. No início deste ano, a Airbus adquiriu o controle total do programa de jatos regionais C Series da canadense Bombardier, durante anos a principal rival da Embraer.
Ainda não está clara a estratégia que a empresa brasileira adotará para se reposicionar no mercado. Há quem defenda que ela deva buscar um novo parceiro para se fortalecer e brigar em melhores condições com a Airbus. Nesse caso, um caminho seria se juntar à fabricante chinesa Comac, que tem seu próprio projeto de avião regional, o C919. Essa saída vem sendo apoiada por alguns setores do governo brasileiro, que tem poder de veto em mudanças no controle acionário da companhia.
Para Barbieri, o cancelamento da operação com a Boeing poderá trazer algum tipo de benefício para a empresa brasileira. “A Embraer deverá se manter como uma companhia nacional e integrada, recuperando sua capacidade de desenvolver novos projetos”, analisa o professor da Unicamp. “Possivelmente ela vai perder parte do mercado de aviação comercial para a Airbus, mas isso aconteceria mesmo se o casamento com a Boeing tivesse vingado. No entanto, essa perda poderá ser compensada com maiores vendas nos segmentos de jatos executivos e de defesa.”
Independentemente do caminho que a empresa vai seguir, especialistas apontam que seu maior problema hoje é o impacto da Covid-19. Para superar esse momento, a Embraer deve recorrer à ajuda do Estado, assim como todas as suas concorrentes. “É fundamental que ela se fortaleça para enfrentar os grandes desafios que terá pela frente”, diz Barbieri.
Fronteiras fechadas para estrangeiros, voos cancelados, jatos voando quase vazios, frotas inteiras no chão. O setor aéreo tem sido um dos mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus. Nos últimos três meses, o número de voos comerciais no mundo sofreu uma redução de quase 70%, encolhendo de 109,4 mil operações diárias para 36 mil, segundo o site Flightradar24, que monitora o tráfego de aeronaves no planeta (ver gráfico abaixo). Desde o início da epidemia, mais de 180 países e territórios adotaram medidas limitando o tráfego aéreo ou restringindo a entrada de viajantes do exterior, de acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), que reúne as 300 maiores empresas aéreas do mundo.
A América do Sul, onde alguns governos agiram rapidamente fechando as fronteiras para conter a chegada da Covid-19, foi o continente mais afetado, com perda de cerca de 90% dos voos. No Brasil, a fim de evitar uma paralisação do transporte aéreo, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) coordenou com as empresas do setor o estabelecimento de uma malha essencial que atendesse todas as capitais. O volume de voos semanais caiu para 1.241 em abril, 8,5% do total. A expectativa é de uma gradual retomada das operações a partir do fim deste mês.
Quase 16 mil aviões – 61% da frota global –, segundo a consultoria Cirium, encontravam-se estacionados em aeroportos ao redor do mundo em 11 de maio. “Cerca de 90% da frota brasileira, de pouco mais de 400 aeronaves, está em terra. É um prejuízo incalculável”, lamenta Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Segundo ele, a Iata estima em US$ 314 bilhões o prejuízo global do setor este ano.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.