E agora, Embraer?
Abandonada no altar pela Boeing, a Embraer busca um plano B. O curto prazo vai ser duro. Mas o futuro pode até ser promissor
A fabricante de aviões brasileira Embraer terá um 2020 para desfazer o que fez em 2019. Depois de fechar um acordo para vender sua unidade de jatos comerciais — a mais antiga e lucrativa da companhia — à americana Boeing, por 4,2 bilhões de dólares, a companhia passou 2019 reorganizando as operações. Construiu uma nova sede, gastando 30 milhões de dólares, a 20 quilômetros da primeira, em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Na antiga matriz ergueu uma parede no meio do galpão de testes de aeronaves, que passaria a compartilhar com a nova empresa, na qual teria uma participação de 20%.
Planejou como transferir metade de seus 11.000 funcionários para o empreendimento com a Boeing e mudou a linha de montagem dos jatos executivos para a cidade de Gavião Peixoto, onde já eram fabricados os militares. Cada movimento embutia, para seus orgulhosos trabalhadores, a dor da separação e da despedida, e também a animação de começar outro ciclo aos 50 anos. Conforme os meses e a transação avançavam, porém, o clima ficava mais tenso.
Corria nos escritórios e nas unidades industriais que a Boeing andava hesitante por causa da demora em conseguir reabilitar seu avião 737 MAX, envolvido em dois acidentes entre o final de 2018 e o início de 2019 que mataram seus 346 passageiros. A Embraer seguiu com o processo, obteve a aprovação dos reguladores no Brasil e nos Estados Unidos, e ficou esperando apenas a autorização dos europeus neste início de 2020. Até que, nos últimos dias de abril, a americana desistiu do negócio. Para a Embraer ficou uma conta de 485 milhões de reais com os preparativos e uma dúvida — qual é o futuro da companhia?
A resposta mais precisa, neste início de maio, é: ninguém sabe. A Embraer vai enfrentar o pior cenário para a aviação mundial de que se tem registro na história com a desvantagem de ter separado suas operações. O professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) Oscar Malvessi estima, com base em dados do balanço da Embraer, que o custo total, considerando despesas e perdas de eficiência, tenha sido superior a 800 milhões de reais.
“Essa é minha interpretação quando comparo o balanço integrado da empresa em 2018 com a soma das partes em 2019”, disse ele. Esse custo total, segundo o professor, reflete também os dois anos que a companhia dedicou à transação com a Boeing, e não à melhora de sua competitividade. A Embraer terminou o mês de dezembro com 11,2 bilhões de reais em caixa, ante uma dívida total de 13,7 bilhões. De acordo com os cálculos de Malvessi, tem 177 dias de cobertura de liquidez.
Agora, tudo o que transitar de uma Embraer para a outra, de peças e equipamentos, vai gerar pagamento de impostos, pois as empresas têm CNPJ diferente e a transferência será classificada como transação comercial. Mantê-las separadas, portanto, será um trabalhão. Juntá-las, por sua vez, demandará dedicação — e dinheiro — em meio à crise.
A divisão de jatos comerciais da Embraer, incluindo o centro logístico de Taubaté, a subsidiária de equipamentos Eleb e a fábrica de peças em Évora, Portugal, seria transferida para a Boeing Brasil-Commercial, a parceria entre a Boeing e a Embraer. Outra sociedade foi estabelecida para a comercialização do cargueiro militar KC-390, com participação de 51% da brasileira e 49% da Boeing, que teve sua primeira unidade entregue à Força Aérea Brasileira em setembro de 2019.
A Embraer que ficou pretendia investir mais em negócios inovadores, como o desenvolvimento de aviões elétricos, satélites e sistemas de monitoramento de fronteiras. Não se sabe se os novos projetos serão mantidos. Sem a Boeing, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também será um dos protagonistas no auxílio à Embraer.
Os valores discutidos variam de 1 bilhão a 1,5 bilhão de dólares, numa cesta de crédito mais capital (ações ou bônus de subscrição), em proporções não definidas até o fechamento desta edição da EXAME, em 5 de maio. O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, deu declarações de que o governo, como dono de uma golden share, buscaria um novo comprador para a empresa e indicou que potenciais parceiros estariam na China — a China Commercial Aircraft (Comac) é tida como a principal interessada.
O mercado de aviação que emergirá da crise pode ser bastante diferente daquele que levou a administração da Embraer a buscar um negócio com a Boeing em 2017. Apesar do bom desempenho financeiro da companhia, faltava ritmo de expansão. A receita líquida da Embraer passou a última década oscilando entre 5,1 bilhões e 6,3 bilhões de dólares. A companhia se dedica ao desenvolvimento e à fabricação de jatos regionais, um mercado que representa menos de 10% de toda a indústria.
O setor vinha registrando expansão cada vez mais concentrada nos aviões de maior porte, e tornava-se crucial ter acesso a uma carteira de clientes tão vasta quanto a da Boeing, um colosso que fabrica 800 aviões por ano. Além disso, o peso de um gigante fazia falta diante do movimento da Airbus, que em 2017 havia comprado a família de jatos regionais C-Series da canadense Bombardier (maior concorrente da Embraer).
Em 2018 e 2019, a Embraer subiu no palanque para justificar quanto dependia de um acordo com a Boeing para, dessa forma, amenizar as críticas dos investidores frustrados com o preço fechado no negócio. Agora o desafio está em convencer o mercado do contrário. É comum que após crises econômicas o mercado de aviação comece a reaquecer com os aviões menores. Contudo, como aponta Renato Mimica, diretor da EXAME Research, braço de análises de investimentos da EXAME, é muito difícil prever quando a demanda por novos aviões será retomada.
“Haverá um grande mercado de aviões usados à disposição para arrendamentos como resultado da queda na demanda e do ajuste de frota das companhias aéreas”, diz. As apostas para a retomada do mercado à normalidade variam de dois a cinco anos. Crescimento mesmo — quando novos aviões são vendidos — não se tem ideia de quando vai ocorrer de novo. Nem mesmo o megainvestidor Warren Buffett, reconhecido por seu foco no longo prazo, achou por bem pagar para ver. O único setor do qual sua empresa, a Berkshire Hathaway, se desfez de todas as ações em razão da pandemia foi o de aviação, num total de 6,5 bilhões de dólares.
“Time kills deals.” A máxima do mundo dos negócios é uma das frases mais repetidas por quem analisa o vaivém da Embraer. Para banqueiros, advogados e até executivos, uma transação que leva mais de dois anos para sair do papel abre espaço para o surgimento de uma série de eventos não previstos que mudam o resultado final. A pandemia do coronavírus, que congelou o setor de aviação, ampliou o tamanho do problema da Boeing com a crise do modelo 737 MAX.
Juntos, esses eventos para lá de extraordinários explicam como a companhia americana saiu de uma posição de pujança para ter de levantar 25 bilhões de dólares em bônus, com vencimento previsto para 2060. A captação ocorreu no fim de abril, logo depois de a Boeing bater em retirada do acordo com a Embraer. A Boeing perdeu 24% de sua receita líquida em 2019, para 76,5 bilhões de dólares, e teve um prejuízo de 636 milhões de dólares, ante um lucro líquido de 10,5 bilhões de dólares em 2018. O valor de mercado caiu de 180 bilhões para 80 bilhões de dólares nos últimos meses.
A união da Boeing com a Embraer foi especialmente longa por envolver pontos sensíveis. O governo brasileiro, na época liderado pelo presidente Michel Temer (PMDB-SP), não queria entrar para a história como aquele que se desfez da companhia que ganhou fama internacional por sua tecnologia de ponta. Somente para ajustar os planos ao desejo do governo brasileiro foram oito meses até que um primeiro memorando de entendimento fosse assinado em julho de 2018. Um ano foi gasto até que as empresas assinassem um acordo que pudesse ser submetido a seus acionistas, em assembleias, condicionado à aprovação de órgãos da concorrência — segundo executivos próximos, a própria Boeing esticou os prazos com os reguladores europeus após a crise com o 737 MAX.
Com o negócio desfeito, o amor virou guerra. No dia em que anunciou a desistência da transação, a manhã do sábado 25 de março, a Boeing apontou que a Embraer deixou de cumprir condições precedentes que seriam necessárias para que o negócio fosse concluído. A Embraer reagiu. Antes da abertura dos mercados na segunda-feira 27 de abril, informou que estava dando a largada em uma arbitragem, nos Estados Unidos, contra a Boeing por produzir “falsas alegações” e “fabricar argumentos” para “quebrar” o acordo de forma unilateral.
“A Boeing trabalhou diligentemente por mais de dois anos para finalizar a transação com a Embraer. Nos últimos meses, tivemos produtivas porém frustradas tentativas de negociação a respeito de cláusulas não cumpridas do acordo”, afirmou em nota Marc Allen, presidente da Embraer Partnership & Group Operations, executivo da Boeing que liderava o processo de combinação das empresas. A EXAME apurou que o principal descumprimento alegado pela Boeing seria a Embraer não ter alcançado a meta de investimento no segmento de aviação comercial — da ordem de 200 milhões de dólares — com a qual teria se comprometido até que a Boeing assumisse o negócio. A Embraer afirmou, em nota, que acredita “estar em total conformidade com suas obrigações previstas”. Para a Embraer, o real motivo da desistência da Boeing é a crise interna da empresa. As duas companhias não deram entrevista.
Entre as condições precedentes para o acordo também estava a bênção dos órgãos de concorrência. A operação já havia recebido o aval prévio nos Estados Unidos, no Japão, na China e no Brasil. Faltava, contudo, a análise da Comissão Europeia, que no fim do ano passado ainda aguardava uma longa lista de documentos solicitados às companhias.
Poucos dias antes do prazo final das empresas, o órgão europeu adiou a data final de seu parecer para 7 de agosto, o que levou a especulações de que também o prazo para a assinatura do acordo poderia se modificar. A Boeing reduziu seu engajamento para a aquisição da Embraer já no segundo semestre de 2019, mas levar as conversas até a data final teria sido apenas uma estratégia de reputação adotada para evitar, além da multa, problemas legais que poderia enfrentar ao assumir a desistência por interesse próprio.
Tudo indica que as práticas de governança de ambas as empresas sofrerão um escrutínio maior a partir de agora. A Embraer é, desde 2006, quando aderiu ao Novo Mercado da B3, uma companhia sem controlador definido. Atualmente, a maior acionista da Embraer é a gestora de recursos Brandes, com 15% do capital. Depois, na lista de acionistas relevantes, ou seja, com 5% ou pouco mais, estão BNDES, BlackRock e a casa fundamentalista americana Hotchkis & Wiley. Esse modelo dá superpoderes ao conselho de administração, de onde partiu a idealização do negócio com a Boeing.
O colegiado e os executivos estão, agora, pressionados a buscar uma solução ao mesmo tempo que devem ter suas políticas escrutinadas. O conselho da Embraer custa, em salários fixos, quase o mesmo valor da diretoria estatutária. Acessar recursos do BNDES exigirá que os executivos abdiquem de seus bônus — estará na cartilha do banco de fomento para os resgates. Na assembleia de acionistas, a companhia aprovou um pacote global de remuneração para 2020 de 63 milhões de reais — 17% maior do que o total pago no ano passado, sem pandemia e com Boeing.
Na Boeing, o grande ponto a ser atacado na governança serão as agressivas recompras de ações. O saldo em tesouraria que a Boeing mantinha de suas próprias ações estava em 55 bilhões de dólares no fim de março (registradas pelo valor de custo, e não pelo de bolsa), comparado a um caixa disponível de 15 bilhões de dólares. Como uma empresa que foi tão a fundo nas recompras agora não tem caixa para consumar o negócio com a Embraer? Ficar sozinha pode não ser o fim do mundo para a empresa brasileira, apesar da tormenta de reunir o que estava separado.
Se antes dizia que precisava da parceria com a Boeing para sobreviver, agora a Embraer consegue enxergar outro futuro, sozinha. “Quando esta crise passar, o mercado de aviação será muito diferente. Com menos passageiros e menos viagens longas, a demanda por aviões de médio porte vai crescer mais do que se previa anteriormente”, diz um alto executivo da Embraer. Segundo esse raciocínio, as companhias aéreas vão priorizar os aviões que têm até 150 lugares, especialidade da fabricante brasileira. Um novo modelo, o E195-E2, já foi entregue à Azul. Não há vencedores no trágico negócio entre brasileiros e americanos. Mas a Embraer pode estar numa encruzilhada menor do que a Boeing.