‘Heróis’ da pandemia recebem ameaças de vizinhos na Espanha
Mesmo depois de um dia na linha de frente contra o coronavírus, profissionais da saúde e outros trabalhadores registram hostilidades ao chegar em casa
Profissionais de saúde da Espanha recebem aplausos e homenagens de moradores enclausurados em suas sacadas durante a quarentena no país, o segundo mais atingido pela pandemia do coronavírus, e são chamados de heróis por se arriscarem todos os dias.
Porém, o tratamento que médicos e outros trabalhadores da linha de frente recebem quando voltam para casa é totalmente diferente.
Cartas pedindo para que eles deixem a vizinhança, ofensas e até a vandalização do carro de uma médica com a frase “rata contagiosa” são algumas das violências que os profissionais sofreram e contaram à agência EFE.
A desinformação e o medo fazem com que vizinhos acreditem que vão ser infectados por morarem tão perto de alguém que trabalha diretamente na luta contra o coronavírus. Além daqueles que passam o dia nos hospitais, atendentes de mercado e de outros serviços essenciais também são ameaçados.
“Olá, vizinho. Sabemos do seu trabalho no hospital e agradecemos, porém, você devia pensar em seus vizinhos. Aqui tem crianças e idosos. Há lugares em que estão alojando profissionais. Enquanto durar a pandemia, pedimos que pense nisso”, dizia a carta que o médico espanhol Jesús recebeu ao voltar do trabalho um dia.
Além de Jesús, a caixa de supermercado Miriam e o açougueiro também receberam cartas anônimas pedindo que se mudassem. A ginecologista Silvana teve o carro pichado por moradores do mesmo prédio.
A polícia espanhola anunciou nesta semana que vai investigar os casos como crime de ódio contra profissionais expostos ao coronavírus.
Além das investigações locais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também já recebeu denúncias de violência, agressão e assassinatos de profissionais da saúde pelo mundo desde o começo da pandemia.
Jesús contou à Agência EFE que ficou triste ao receber a carta depois de um mês se sacrificando no hospital, mas agradeceu a atitude “maravilhosa e exemplar” da maioria da população que homenageou os médicos e enfermeiros com aplausos.
Depois da carta pedindo que ele se mudasse, ele recebeu uma nova: “Aqui vive um herói”.
Miriam, uma caixa de supermercado em Cartagena, também recebeu cartas de “despejo” dos vizinhos, que se preocupavam com o fato de ela estar fora de casa todos os dias para trabalhar.
“Somos seus vizinhos e queremos te pedir pelo bem de todos que busque uma outra casa enquanto durar a pandemia, já que vimos que você trabalha em um supermercado e aqui vivem muitas pessoas. Não queremos mais riscos”.
O filho de 10 anos da mulher foi quem recebeu a carta e achou que os vizinhos estavam reconhecendo o trabalho da mãe e que queriam que ela buscasse um lugar melhor para viver. Quando descobriu que esse não era o caso, ele chorou.
Sem aguentar o desrespeito, Miriam tratou de escrever uma resposta aos vizinhos, que deixou na recepção do prédio.
“Aos valentes que deixam mensagens anônimas, lhes digo várias coisas: sim, trabalho em um supermarcado, e graças a nós, vocês podem comer todos os dias”.
Ela também pedia empatia no lugar de aplausos nas ovações e homenagens feitas às noites para os trabalhadores na linha de frente contra a pandemia e aqueles que tinham que sair de casa.
“Estamos ajudando muitas pessoas enquanto estamos nos colocando em risco. Me parece covarde, não têm direito”, disse à EFE.
Em Barcelona, a ginecologista Silvana entrou na garagem para sair para mais um dia de trabalho como ginecologista, mas encontrou o carro novo vandalizado. Ao lado da porta do motorista haviam pintado “rata contagiosa” com spray preto no carro branco.
Antes de ajudar uma mulher em seu parto, a médica relatou o ataque à polícia.
José Antonio trabalha no açougue de um hipermercado na província de Corunha quando viu um envelope do lado de fora de sua casa, pensou que seria devido à agitação e bagunça de seu filho de dois anos, mas estava errado.
A carta, escrita com letra maiúscula e sem assinatura, pedia que ele encontrasse outro lugar, porque seu trabalho representava um perigo para a comunidade.
Sua esposa, grávida de cinco meses, teve um ataque de pânico. Eles conversaram com todos os residentes e encontraram apoio e incentivo deles. “Eles não sabem o que aconteceu ou quem conseguiu deixar o envelope”, disse ele a Efe.
O Conselho Geral de Enfermagem disponibilizou sua assessoria jurídica a seus membros no caso de queixas contra profissionais serem “suscetíveis de denúncia judicial”, disse à Efe José Luis Cobos, vice-secretário-geral, que descartou as ameaças como “minoria” mas “muito repreensíveis”.